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Cancel Culture aplicada à geopolítica
Da Solidariedade como valor
Quase duas semanas desde a invasão orquestrada por Putin sobre o território e o povo ucraniano. Pela Europa e pelo Mundo, dos mais treinados aos novatos que descobriram a ocupação da rua enquanto ato político, levantaram-se vozes e cartazes contra a guerra. A solidariedade que este povo nos merece não pode olhar a táticas que lhes são estranhas. Infelizmente, desse momento, parecem ter ficado as imagens para arquivo, surgindo como mais importante o debate sobre a fila da frente que segura a faixa do protesto. E se esse exercício já é lamentável por si só, ele esquece ainda para mais que há outra fila da frente: a de todos os cidadãos que ora combatem Putin na rua ora procuram agarrar a vida para lá das fronteiras. Na solidariedade para com o povo ucraniano, não há espaço para campeonatos do humanismo nem dúvidas que nos desviem do essencial: a condenação de uma invasão militar de um estado soberano sobre outro. A Solidariedade enquanto valor pratica-se sobre todos os atentatos aos Direitos Humanos porque é isso mesmo: um valor e não uma correria ao pódio.
Um olhar inclusivo sobre as vítimas
Da Ucrânia, foge quem pode e quem, na fronteira ou na estação ferroviária, lhe é permitido abandonar o país. Nesta multidão de tristeza, de separações forçadas, de frio e de escassez de bens essenciais, há estudantes indianos que esperam há dias para sair de um país que não é sequer o deles. Os negros ficam do lado de fora da carruagem do comboio, onde se incluem crianças e mulheres. As notícias que nos trazem ora desgraça humana da mãe e do pai que transportam a filha ao hospital ora a segregação racial vivida por comunidades estrangeiras convidam-nos a compreender o fenómeno que não encaixa em três frases no twitter. A leitura simples e preguiçosa é rica em apoios digitais e um fracasso para quem espera mesmo encontrar soluções coletivas que acabem com a guerra.
Parece não ser possível sequer condenar Putin enquanto oligarca que enriqueceu (também) à custa de uma Europa que lhe abriu as portas. Identificar as ligações dos mais próximos do chefe da Federação Russa a uma elite financeira e política europeia é uma tarefa que tem merecido o carimbo de putinista. Se, por um lado, interpretar tais factos à imagem de uma guerra fria que o passado já levou nos impede de compreender os imperialismos hoje, decidir qualquer debate a priori com o jargão da “guerra ao modo de vida ocidental” é um insulto a qualquer legado de Europa do pensamento crítico e da cultura. É um problema para uma Europa que ao mesmo tempo quer acolher mas se fecha ao mundo. É um erro estratégico porque esquece, nomeadamente, o povo russo enquanto sujeito político subversivo contra o autocrata. A russofobia não é anti-Putin.
A guerra da desinformação
Truncar informação sobre votações no Parlamento Europeu, estampar a cara de Putin na estátua de Lenine (para, de seguida, falar das suas ligações à extrema-direita), insistir em não compreender a oligarquia russa enquanto peça-chave nos mercados financeiros europeus, desligar a emissão de canais russos no território europeu em nome da Liberdade (?) - entre outros erros propositados - não nos fornece mais e melhores armas para combatermos Putin. Encarnam um modus operandi que não só é uma caixa de pandora como desiste de acreditar nos próprios valores que quer defender.
Uma transformação da política como esta guerra já está a causar a nível mundial merece mais do que uma trend desinformada e simplista. Este triste ensaio de cancel culture aplicada à geopolítica pode muito bem ser um veneno em vez da cura. Contra Putin e o imperialismo que transporta, contra a guerra, a política enquanto coisa que se propõe resolver os dramas da vida coletiva não pode ser substituída por aquilo que nos tolhe o pensamento.
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