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A canábis e o preconceito
Em novembro do ano passado, o diretor-executivo da empresa canadiana Tilray esteve na Web Summit a anunciar o início da maior plantação de canábis em Portugal. Entre a robot Sophia, os discursos do Primeiro-Ministro e do Presidente da República e a apresentação de várias inovações tecnológicas, Brendan Kennedy anunciou o objetivo de ter mais de cem mil plantas no Parque Tecnológico de Cantanhede.
O investimento valerá cerca de 20 milhões de euros e promete criar cem empregos. O negócio é a exportação de canábis produzida em Portugal para países que a usem para fins medicinais, como a Alemanha, a Croácia ou o Chipre.
Não é caso único. Outro projeto de uma empresa israelita obteve aval do Governo para iniciar uma plantação. A primeira licença remonta a 2014, teve a duração de um ano e foi concedida à Terra Verde, Lda. A marijuana plantada terá sido 100% exportada para o Reino Unido e utilizada para a produção de medicamentos a utilizar no alívio da dor derivada de doenças oncológicas, na esclerose múltipla e na epilepsia.
Portugal entrou assim no num novo patamar da hipocrisia que normalmente ensombra o debate público sobre a utilização de canábis para fins medicinais. Permite que empresas estrangeiras coloquem Portugal no mapa do negócio milionário da plantação para fins medicinais, mas não permite o acesso legal à canábis a doentes em território nacional.
Se existe um aumento da produção destes componentes derivados da canábis, é porque a sua prescrição médica tem vindo a ser reconhecida de forma cada vez mais ampla e sistemática. Essa é também a opinião de mais de 100 personalidades da área da medicina geral, neurologistas, oncologistas, psicólogos, investigadores, enfermeiros e doentes, que esta semana entregaram uma carta aberta em que pedem à Assembleia da República que legalize a canábis para fins medicinais
Também a Organização Mundial de Saúde (OMS) reviu recentemente as suas posições sobre duas substâncias, o Carfentanil e o Canabidiol (CBD). Em relação ao primeiro, um opiáceo sintético cem vezes mais forte do que a heroína, comercializado enquanto medicamento, a OMS alerta que “pode ter efeitos letais em doses extremamente pequenas”.
Quanto ao Canabinol, um dos componentes com propriedades medicinais mais frequentes na planta da canábis, a OMS afirma que “pode ter valor terapêutico para as convulsões devidas à epilepsia e outras condições semelhantes” e que “também pode ser útil no tratamento de Alzheimer, cancro, psicoses, parkinson e outras doenças graves”, salientando que não provoca dependência.
Há muitos outros exemplos que demonstram um preconceito na base da classificação do que é considerado “medicamento” e do que é decretado como “droga”. É uma questão moral, e não de saúde, que tem impedido este debate.
Esta semana será discutido na Assembleia da República um projeto do Bloco de Esquerda que propõe a legalização da canábis para fins medicinais. Para garantir a separação entre o uso terapêutico e o recreativo (outro debate importante), propomos que a prescrição da cannabis seja feita com receita médica especial, com identificação do médico e do doente, e só que só possa ser aviada em farmácias.
Estamos hoje em condições de tomar uma decisão esclarecida. As eventuais questões sobre os benefícios e riscos da utilização terapêutica da canábis têm vindo a ser respondidas por quem sabe de saúde. O que nos irão perguntar a nós, deputadas e deputados, é se temos direito a recusar alívio e a atirar doentes para o mercado negro por puro preconceito moral.
Artigo publicado no jornal “I” a 10 de janeiro de 2018
Comentários
Constituição da República
Constituição da República Portuguesa (vai trabalhar... diz que eu quero autorização)
Artigo 9.º
Tarefas fundamentais do Estado
São tarefas fundamentais do Estado:
b) Garantir os direitos e liberdades fundamentais e o respeito pelos princípios do Estado de direito democrático;
d) Promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efectivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais, mediante a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais;
Artigo 13.º
Princípio da igualdade
1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
Artigo 26.º
Outros direitos pessoais
1. A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação.
3. A lei garantirá a dignidade pessoal e a identidade genética do ser humano, nomeadamente na criação, desenvolvimento e utilização das tecnologias e na experimentação científica.
Artigo 42.º
Liberdade de criação cultural
1. É livre a criação intelectual, artística e científica.
2. Esta liberdade compreende o direito à invenção, produção e divulgação da obra científica, literária ou artística, incluindo a protecção legal dos direitos de autor.
Artigo 43.º
Liberdade de aprender e ensinar
1. É garantida a liberdade de aprender e ensinar.
2. O Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas.
Artigo 46.º
Liberdade de associação
1. Os cidadãos têm o direito de, livremente e sem dependência de qualquer autorização, constituir associações, desde que estas não se destinem a promover a violência e os respectivos fins não sejam contrários à lei penal.
2. As associações prosseguem livremente os seus fins sem interferência das autoridades públicas e não podem ser dissolvidas pelo Estado ou suspensas as suas actividades senão nos casos previstos na lei e mediante decisão judicial.
3. Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação nem coagido por qualquer meio a permanecer nela.
4. Não são consentidas associações armadas nem de tipo militar, militarizadas ou paramilitares, nem organizações racistas ou que perfilhem a ideologia fascista.
Artigo 47.º
Liberdade de escolha de profissão e acesso à função pública
1. Todos têm o direito de escolher livremente a profissão ou o género de trabalho, salvas as restrições legais impostas pelo interesse colectivo ou inerentes à sua própria capacidade.
Artigo 58.º
Direito ao trabalho
1. Todos têm direito ao trabalho.
Artigo 60.º
Direitos dos consumidores
1. Os consumidores têm direito à qualidade dos bens e serviços consumidos, à formação e à informação, à protecção da saúde, da segurança e dos seus interesses económicos, bem como à reparação de danos.
3. As associações de consumidores e as cooperativas de consumo têm direito, nos termos da lei, ao apoio do Estado e a ser ouvidas sobre as questões que digam respeito à defesa dos consumidores, sendo-lhes reconhecida legitimidade processual para defesa dos seus associados ou de interesses colectivos ou difusos.
Artigo 64.º
Saúde
1. Todos têm direito à protecção da saúde e o dever de a defender e promover.
2. O direito à protecção da saúde é realizado:
a) Através de um serviço nacional de saúde universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito;
b) Pela criação de condições económicas, sociais, culturais e ambientais que garantam, designadamente, a protecção da infância, da juventude e da velhice, e pela melhoria sistemática das condições de vida e de trabalho, bem como pela promoção da cultura física e desportiva, escolar e popular, e ainda pelo desenvolvimento da educação sanitária do povo e de práticas de vida saudável.
3. Para assegurar o direito à protecção da saúde, incumbe prioritariamente ao Estado:
a) Garantir o acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica, aos cuidados da medicina preventiva, curativa e de reabilitação;
b) Garantir uma racional e eficiente cobertura de todo o país em recursos humanos e unidades de saúde;
c) Orientar a sua acção para a socialização dos custos dos cuidados médicos e medicamentosos;
d) Disciplinar e fiscalizar as formas empresariais e privadas da medicina, articulando-as com o serviço nacional de saúde, por forma a assegurar, nas instituições de saúde públicas e privadas, adequados padrões de eficiência e de qualidade;
e) Disciplinar e controlar a produção, a distribuição, a comercialização e o uso dos produtos químicos, biológicos e farmacêuticos e outros meios de tratamento e diagnóstico;
f) Estabelecer políticas de prevenção e tratamento da toxicodependência.
4. O serviço nacional de saúde tem gestão descentralizada e participada.
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