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A Caixa é pública ou privada? É conforme, tem dias...

A situação na CGD não vai ter um final feliz, desde logo para a Caixa.Mas, também, para os seus administradores, primeiro-ministro, ministro das finanças.

E, para o próprio Marcelo que, primeiro, promulga sem pestanejar o decreto que provocou todo este imbróglio e depois vem pressionar tudo e todos – administradores, Governo, Tribunal Constitucional, Assembleia da República - para que cumpram ou façam cumprir aquilo de que estão dispensados precisamente pela lei por ele promulgada. Que cambalhota, ainda por cima em assunto que não é sequer da sua competência.

Mesmo que as remunerações venham a ser reduzidas e as declarações de rendimento e património da administração cheguem ao TC, por decisão dos próprios, imposição legal ou exigência do TC, ou até mesmo que o TC possa dispensar a sua entrega ou reservar a sua divulgação, aconteça o que acontecer, a sucessão de erros e disparates cometidos prejudicam de forma incontornável a CGD.

No limite, pode ser o fim desta administração e a própria recapitalização pode andar para trás. Aliás, cedo se percebeu que são precisamente esses os objectivos da direita, timidamente esboçados pelos líderes do PSD e do CDS mas descaradamente denunciados pelo partido dos comentadores, cada vez mais a oposição que se faz ouvir.

Alcançados aqueles objetivos, advinha-se o passo seguinte: exigir a cabeça do ministro Mário Centeno, há muito, o alvo preferido pela direita, e reabrir, junto dos seus amigos da Comissão Europeia e do BCE, o dossiê da recapitalização do banco público, agora com capitais privados, fazendo regressar à agenda a tão desejada privatização da CGD. Uma tempestade política perfeita, com ondas de choque imprevisíveis.

Dá que pensar como o governo se deixou cair e embrulhar neste enredo. Como entender que não tenha havido quem, no governo – ministros, secretários de estado, adjuntos, assessores, consultores, enfim, tantas centenas de cabeças pensantes – tenha percebido que, depois de tantos casos na banca e sucessivos escândalos com banqueiros, os portugueses não aceitam nem salários milionários nem estatutos de excepção, ainda por cima tratando-se de um banco para onde vão ser canalizados muitos milhões de euros saídos direitinhos dos seus bolsos?

Enfim, mais que defeito, é feitio. Feitio de governantes que respeitam em demasia os excessos e extravagâncias dos nossos banqueiros mas pouco respeitam os princípios básicos a que deve obedecer a condução da vida pública. Ao contrário do que pretende o governo, não basta o escrutínio pelo acionista, no caso, o Estado, nem tão pouco pelos órgãos de controlo interno da própria Caixa. Na nossa democracia, esse escrutínio compete ao Tribunal Constitucional, quer sobre os rendimentos e património dos gestores públicos, quer quanto a incompatibilidades e impedimentos para o exercício das referidas funções.

Pretender que a CGD seja pública para umas coisas e privada para outras, pública para os contribuintes financiarem e privada para os administradores receberem mega salários e dispensarem-se dos deveres de transparência, em resumo, uma CGD com dupla personalidade – ora pública ora privada, segundo as conveniências de quem manda, é uma aberração que não pode aceitar-se.

Sim, uma aberração, mesmo que tivesse sido imposta pelas autoridades europeias como condição para aprovar a recapitalização pública da CGD, sem contabilizar no défice nem classificar como ajuda do Estado, explicação ainda ensaiada pelo governo – pior a emenda que o soneto – sem conseguir convencer fosse quem fosse.

Ainda há tempo para evitar danos maiores. Basta alguma lucidez e bom senso por parte do governo e dos administradores da CGD. Afinal de contas, cumprir padrões de transparência não faz urticária e, bem vistas as coisas, entre tantos milhões não serão alguns milhares a fazer a diferença ao fim do mês.

Encerrado o folhetim CGD, talvez o país preste atenção ao orçamento e respire de alívio quando ficar a saber que, em 2017 e pelo segundo ano consecutivo, o que sobe são os salários e as pensões e o que desce são os impostos. Mudanças que PSD e CDS tanto têm procurado esconder. E, para isso, que jeito lhes tem dado este folhetim...Bem podem agradecer ao governo!

Artigo publicado na revista “Visão” em 10 de novembro de 2016

Sobre o/a autor(a)

Médico. Aderente do Bloco de Esquerda.
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