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Buíça e Costa

"Meus filhos ficam pobríssimos; não tenho nada para lhes legar senão o meu nome e o respeito e compaixão pelos que sofrem. Peço que os eduquem nos princípios da liberdade, igualdade e fraternidade que eu comungo e por causa dos quais ficarão, porventura, em breve, órfãos."

Estas últimas palavras da carta-testamento de Manuel Buíça, redigida quatro dias antes do regicídio, são o melhor testemunho das firmes convicções que o levaram, com Alfredo Costa, a dirigir-se ao Terreiro do Paço e atentar contra o símbolo do sistema que pretendia destruir.

Republicanos e membros da Carbonária, os regicidas actuam por impulso próprio, não por qualquer ordem de dirigentes ocultos, acreditando que a sua atitude radical de sacrifício por um ideal, podia mudar o rumo do país. A falência do liberalismo económico e do rotativismo monárquico, bem como a actuação de um rei que colaborava com o ditador João Franco, tinham levado Portugal para um beco sem saída que provocava a miséria crescente nas classes populares.

Mas quem eram estes dois homens, protagonistas daquele dia 1 de Fevereiro de 1908?

Do seio da imensa planura alentejana, veio Alfredo Costa. Como muitos outros, foi atirado da sua Casével (Castro Verde) natal, para a Lisboa ponto de chegada de todos os interiores. Segundo Aquilino Ribeiro, no seu livro Um Escritor Confessa-se, era "alto, desengonçado de corpo, duma fisionomia séria, quase triste, grandes olhos castanhos, nariz levemente amolgado sobre a esquerda. É provável que uma tuberculose descurada, traiçoeiramente seguindo caminho, lhe achatasse o tórax, aguçasse os ombros e lhe imprimisse às costas uma quebratura já perceptível."

Empregado do comércio, trabalhou nos Grandes Armazéns do Chiado e depois num estabelecimento de ferragens.

O seu sentido de justiça, levou-o a empenhar-se no associativismo de classe, chegando mesmo a presidir à Associação dos Empregados do Comércio de Lisboa. No jornal O Caixeiro,  escreve:

"Sou pelas greves, como sou por todos os meios de resistência empregados pelo fraco, pelo oprimido, em defesa dos seus mais legítimos interesses quando extorquidos pelo forte, arvorado em opressor. Sempre que um patife tenta ferir a nossa dignidade ou um ladrão nos quer tirar a bolsa, é dever sagrado atirarmo-nos a ele, sem olharmos às forças de que dispomos e às consequências da luta. Para os patrões burgueses que nos exploram, e nós servimos sabujamente, vai o meu mais activo ódio e a minha viva repulsa."

Manuel Buíça era transmontano de Bouçais (Valpaços), filho ilegítimo do pároco de Vinhais. Diz-nos Aquilino que "era homem de estatura meã, rosto fino, tez branca a que dava realce a barba preta com tons de fogo. A testa era espaçosa, com arcadas. A aparência, toda ela de franzino, mascarava-lhe inteiramente o génio assomadiço e a coragem que não era tarda nem jamais receosa a medir-se. Só os olhos muito móveis e azuis, mas sem crueza, traíam nele o ânimo expedito e a índole exaltada."

No Café Gelo, no Rossio, era certo à mesa branca, na parte que olhava para a Rua do Príncipe, um cálice de conhaque à frente, a fazer a correspondência ou cavaquear alto com conhecidos ou próximos. O café significava para ele o cenáculo, a roda de amigos a que levava a sua amizade, a vozearia a que misturava a voz.

Era professor no Colégio Moderno e antes, no exército, tinha chegado a sargento, distinguindo-se como exímio atirador. Morava nas Escadinhas da Mouraria, num quarto andar. Era viúvo e pai de dois filhos, Elvira com sete anos e Manuel com seis meses.

Foram estes dois homens que há cem anos, saíram do Café Gelo, em direcção ao Terreiro do Paço, com a certeza de que não regressariam vivos do seu encontro com a história...

Sobre o/a autor(a)

Professor e historiador.
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