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Botões de emergência

Carregavam no botão de emergência, as mais das vezes, apenas para ouvir alguém do outro lado. A sua emergência era, acima de tudo, falar - e ouvir outro ser humano.

Uma pessoa que vai participar numa corrida de rua (do tipo da minimaratona de Lisboa ou da corrida de São Silvestre no Porto) contrata um estranho para desempenhar o seguinte serviço: estar na zona da meta e saudá-la à chegada, para ter alguém com quem partilhar e celebrar esse momento. É um exemplo de uma tendência de satisfação de necessidades pessoais através do recurso ao trabalho pago de outros, num mercado de microtarefas afetivas que se contratam em plataformas digitais. Mas é também, de um outro ponto de vista, uma história de profunda solidão.

Uma das muitas contadas por Arlie Hochschild, conhecida socióloga norte-americana, num livro sobre o que designa outsourcing do trabalho emocional.

Com vidas sobreocupadas pelo emprego, há quem não tenha tempo para esse outro trabalho, laborioso, que é sermos humanos. Isto é: criarmos e sustentarmos relações não mercantis com outras pessoas, cultivarmos amizades, testemunharmos as alegrias, as tristezas e os feitos daqueles e daquelas com quem vamos estabelecendo vínculos afetivos.

No livro de Hochschild não faltam exemplos de profissionais contratados para preencherem algumas das dimensões mais pessoais, aparentemente triviais ou explicitamente emocionais da nossa existência, numa intersecção problemática entre comércio e vida privada: organizar a festa de anos, fazer o trabalho de gestação de uma criança, dar orientação na escolha do nome para um filho, ajudar a criar uma “narrativa” para o casamento, fazer coaching para escrever o perfil mais eficaz e com a medida certa da apresentação de si num site de encontros amorosos, participar no funeral de um desconhecido…

Para além desta dimensão de transação mercantil de necessidades afetivas, e do potencial de desumanização que ela acarreta, há muitas outras expressões da exaustão dos laços de cuidado e da necessidade desesperada de contacto humano.

Valentina Perrotta, especialista em políticas de cuidados, explicava, numa sessão pública recente, um efeito inesperado da aplicação da teleassistência a idosos no Uruguai. Pensada como mecanismo de resposta a situações de emergência, esta tecnologia de apoio à distância permite que pessoas mais velhas e com algum grau de dependência possam permanecer na sua casa com a segurança de um contacto disponível 24 horas por dia, através de um botão que pode ser acionado pelo utente em caso de urgência.

Só que este dispositivo, concebido para situações de risco, foi usado amplamente, pelas pessoas idosas, noutro tipo de SOS menos excecional. Carregavam no botão, as mais das vezes, apenas para ouvir alguém do outro lado. A sua emergência era, acima de tudo, falar - e ouvir outro ser humano.

São só dois sintomas de um fenómeno mais profundo que talvez devesse sobressaltar-nos. A falta de tempo para relações cuidadosas; a dissolução de laços para além de vínculos instrumentais; horários de trabalho que colonizam a vida, ainda mais quando o emprego é precário; segregações geracionais; a ausência de respostas públicas e comunitárias que permitam a indivíduos e famílias terem uma outra forma de organizarem socialmente as suas necessidades mais elementares.

Não é uma questão moral, que possa ser pensada a partir da responsabilidade individual, ou enfrentada por via da expansão da subcontratação mercantil dos cuidados e das emoções. É preciso virar este mundo do avesso e mudarmos de vida.

Artigo publicado em expresso.pt a 24 de maio de 2023

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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