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Big Brother

As aplicações de rastreio têm sido apresentadas por vários governos como uma espécie de magia: com a sua introdução consolida-se a percepção de que se está a fazer alguma coisa, mesmo que não seja o caso.

A crise pandémica que vivemos acelerou a corrida tecnológica no mundo ocidental. Inúmeros estudos apontam para as mudanças que ocorreram nas relações laborais e sociais num curto espaço de tempo. É inegável que as sociedades foram "obrigadas" a adaptar-se, mas também é verdade que todas as implicações decorrentes dessa adaptação devem ser cuidadosamente analisadas, em particular no que respeita aos impactos para o trabalho. Esse é um debate que está por fazer para além das evidências e é fundamental que seja feito. Há, no entanto, uma área tecnológica que tem sido protagonista e cujas implicações estão muito além das promessas vendidas. Refiro-me às chamadas aplicações de rastreio. Governos, um pouco por todo o mundo, acenam com a solução tecnológica para controlar os contágios por coronavírus, mas será mesmo assim?

As aplicações de rastreio têm sido apresentadas por vários governos como uma espécie de magia: com a sua introdução consolida-se a percepção de que se está a fazer alguma coisa, mesmo que não seja o caso. Nesta concepção de "solucionismo tecnológico" esbate-se o debate sobre as reais medidas de combate ao vírus como sejam o alargamento dos testes à população, a necessidade de melhorar as condições de prestação de cuidados de saúde ou a necessidade de contratação de mais profissionais de saúde. Um exemplo claro dos problemas associados ao recurso às aplicações é o que se passa nos Estados Unidos onde a aceitação de partilha de dados vem com o prémio de se ter vantagem nos tratamentos médicos. Mas há muitos mais problemas escondidos pelo véu da urgência.

Especialistas de vários quadrantes apelam aos riscos associados a estas tecnologias. Vigilância em massa, numa espécie de Big Brother em versão sanitária, violação da legislação da protecção de dados, violação de direitos humanos...

Especialistas de vários quadrantes apelam aos riscos associados a estas tecnologias. Vigilância em massa, numa espécie de Big Brother em versão sanitária, violação da legislação da protecção de dados, violação de direitos humanos, abusos de entidades patronais sobre os seus trabalhadores, confidencialidade dos dados não relacionados com o rastreio da doença, apropriação de dados pessoais por empresas do sector privado e as utilizações abusivas para favorecer o negócio, o reforço dos poderes dados às grandes plataformas como a Google e a Apple são apenas alguns dos problemas já mencionados. Acresce ainda o dado que nos chega dos países que já têm aplicações em funcionamento que é o da sobre-confiança dos utilizadores. Dados mostram que nestes países, como é o caso da Coreia do Sul, a descarga da aplicação se traduziu num incumprimento das normas de segurança, uma vez que os utilizadores passaram a ter uma percepção errada de protecção.

Numa altura em que a maioria dos países da União Europeia, incluindo Portugal, estão envolvidos no desenvolvimento destas aplicações não é ainda tarde para recuar. Parece cada vez mais evidente que não só não são necessárias como não substituem as reais respostas à crise pandémica. Abrir esta porta é como abrir a caixa de Pandora. Daqui não virá nada de bom.

Artigo publicado no “Diário de Notícias” de 6 de junho de 2020

Sobre o/a autor(a)

Eurodeputada, dirigente do Bloco de Esquerda, socióloga.
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