Benditos mercados que nos dão o pão nosso de cada dia

porFrancisco Louçã

24 de janeiro 2013 - 0:58
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Os mercados abriram as portas, terminou o sufoco: mas e os salários? Voltam ao que eram? E as pensões? São devolvidas? E o IRS? Vai baixar? E o IVA? Volta atrás? Nada. Nem um cêntimo. Roubado está, roubado fica.

O “regresso aos mercados”, que foi ontem notícia e hoje vai ser comemoração, tornou-se uma cornucópia de excitações. Portugal nos mercados! Milhões a escorrerem para o país sedento, bonança garantida, aleluia, como valeu a pena tudo o que penamos! No frenesim, Vítor Gaspar, besta até à semana passada, passou a bestial. Que esperto, por não ter pedido a extensão dos pagamentos logo que a Grécia o conseguiu! Que genial, por ter sussurrado ao ministro das finanças da Alemanha e ter esperado quietinho pela sua vez! Que mestre que é o Primeiro que o deixa fazer, que esperto que é o Relvas que nos distrai enquanto a gente aplicada faz o seu trabalhinho nos corredores, e eis-nos nos mercados! Bendito mercado que nos dá o pão de cada dia, santificado seja o Vosso nome!

Não se divirta, cara leitora ou leitor. Tudo isto cheira mal demais.

A operação de empréstimo a cinco anos que hoje será concretizada vai-se mesmo realizar como previsto. Não é “mercado” nenhum quem compra os títulos da dívida do Estado português, aliás o “mercado financeiro” é tudo menos uma feira em que se compra e vende aos gritos. Neste caso, é uma operação sindicada, em que quatro bancos vendem os títulos a clientes com os quais já negociaram há dias os preços e as quantidades. O operação toda é registada em poucos minutos. Esse preço não depende das condições de pagamento da economia em causa, mas antes das garantias que o BCE e as autoridades europeias asseguram: o que quer que aconteça, eles pagam ou garantem que seja paga a conta final. O governo português, pelo seu lado, é generoso como sempre: empresta um bilião ao BANIF (com o dinheiro dos contribuintes) para que o BANIF compre 700 milhões de dívida pública (a juros que vão agravar o endividamento que será cobrado aos contribuintes).

O que temos hoje é portanto uma operação política em que Merkel garante aos eleitores alemães que Portugal não é a Grécia, em que Passos Coelho procura sossegar os autarcas do PSD e em que Paulo Portas se procura safar como puder ser. Benditos mercados que vieram socorrer os aflitos.

É uma operação tanto mais entusiástica e mais gongórica quanto mais fantasiosa. Os benditos mercados sorriem a Portugal, mas os impostos aumentaram este mês cerca de 30 a 40% para muitos dos contribuintes. Os mercados abriram as portas, terminou o sufoco: mas e os salários? Voltam ao que eram? E as pensões? São devolvidas? E o IRS? Vai baixar? E o IVA? Volta atrás? Nada. Nem um cêntimo. Roubado está, roubado fica. Eles estão a dançar no nosso funeral.

Façamos por isso as contas. Imaginemos que a taxa de juro deste empréstimo a cinco anos seja de cerca 5%. Ou a economia portuguesa cresce pelo menos 5% cada um desses cinco anos (para que as receitas fiscais aumentem também e o Estado possa pagar o serviço da dívida), ou esta operação não pode ser financiada. E Portugal não vai crescer 5% ao ano. Pelo contrário, neste ano de 2013 o produto vai cair pelo menos 2% (e pagar 5% de juro?). E as previsões das próprias instituições credoras são de que Portugal não consegue crescer a esse ritmo, entre outras coisas porque a política de austeridade que é aplicada com a sua bênção provoca recessão. Por outras palavras, isto é uma mistificação: benditos mercados que nos emprestam para que fiquemos a dever cada vez mais.

Alguém notou que hoje o Eurostat anunciou que Portugal é o terceiro país proporcionalmente mais endividado da União Europeia, com mais de 120%? Benditos mercados que tanto pão conseguem levar para casa.

Um dia, o essencial tem de bater à porta: a única renegociação que interessa realmente, porque tem efeitos para a economia, será a reestruturação da dívida que determine o abatimento de uma parte da dívida, a redução dos juros e das regras e a alteração dos prazos. Só assim será possível sacudir o peso da canga da dívida da vida das pessoas, em vez de se continuar a corrida para a bancarrota, acentuada agora com o anunciado corte de 4 biliões (ou seja, mais aumento de impostos ou mais redução do salário indireto e do valor real das pensões). Nada do que é agora feito altera essa evidência: Portugal não pode pagar em 2016 o dobro do que paga agora em serviço de dívida e não pode pagar em 2012 mais de 20 biliões de euros. Atrasar os pagamentos sem alterar a dívida é a estratégia de quem quer enganar os contribuintes.

Por isso, é lamentável mas compreensível a estratégia de António José Seguro, que se veio vangloriar de ter tornado possível a operação de hoje graças ao facto de ter garantido que, se houver mudança de governo, as políticas da troika continuarão a ser aplicadas rigorosamente. A esquerda e o país que luta contra a troika nem precisariam de ser lembrados que precisam de derrotar a estratégia da troika, que é a de Seguro. Mas é vantajoso que sejam os próprios promotores da austeridade e da economia da bancarrota a lembrar-nos o que querem fazer.

Francisco Louçã
Sobre o/a autor(a)

Francisco Louçã

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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