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Batota no parlamento

O PSD montou uma farsa em que simultaneamente nos impediu de submeter a proposta à votação e nos acusou de enganar o povo por “falar, falar, falar”mas não cumprir, ou seja, não levar a proposta à votação.

Depois do Orçamento do ano passado, em que o PS aprovou uma proposta do Bloco de Esquerda para uma contribuição sobre a energia renovável, para depois ceder à EDP e dar o dito por não dito, a energia volta a protagonizar um triste episódio na discussão do Orçamento do Estado.

Na 25ª hora do segundo dia de maratona de votações de especialidade, os deputados do PSD solicitaram à presidente da Comissão de Orçamento e Finanças que não votasse as propostas de redução do IVA da eletricidade até aos 6,9 kW apresentadas pelo Bloco, PCP e PEV. Quando decidiu anuir, Teresa Leal Coelho aceitou participar num lamentável ato de cobardia e desonestidade política.

Desonestidade, em primeiro lugar, para com o parlamento. Porque esconderam a carta na manga até ao último minuto. O Bloco de Esquerda apresentou a sua proposta no início do processo orçamental. Ela foi anunciada na imprensa, apareceu nos telejornais, foi objeto de polémica em relação ao seu conteúdo, ou seja, era amplamente conhecida pelo governo, pelos partidos e pela opinião pública. Cumprindo as regras, a nossa proposta foi entregue e aceite pelos serviços da Assembleia da República, incluída pela mesa na ordem de trabalhos da especialidade em plenário, debatida e incluída no guião de votações. Em nenhum momento lhe foi apontada qualquer fragilidade técnica e é até pouco credível que pudesse ter sido aceite se fosse inconstitucional, como sugeriu António Leitão Amaro.

O PSD alega que os grupos parlamentares não podem alargar o âmbito de uma autorização legislativa, ou seja, que não têm sequer competência para fazer aquela proposta. O normal seria que um erro técnico desta natureza impedisse a entrada da proposta a tempo de ser corrigida. Mas isso não aconteceu. Seria difícil sustentar tal posição quando o processo legislativo na Assembleia está repleto de precedentes de projetos similares, exemplos que foram apresentados pelos grupos parlamentares e ignorados pela presidência.

A desonestidade política foi também com o povo. O PSD montou uma farsa em que simultaneamente nos impediu de submeter a proposta à votação e nos acusou de enganar o povo por “falar, falar, falar” mas não cumprir, ou seja, não levar a proposta à votação. Foi a confirmação de António Leitão Amaro como o deputado dos factos alternativos, uma espécie de pós-verdade em versão caseira.

As escolhas democráticas fazem-se em campo aberto, diante dos olhos de toda a gente. Na votação do IVA da eletricidade, o PSD escondeu uma carta na manga por medo de mostrar o jogo. Mas este episódio foi também responsabilidade do Partido Socialista. A cumplicidade com que votou a inadmissibilidade das propostas trouxe à lembrança o volte-face do ano passado.

Em resumo, nenhum dos partidos quis votar a redução do IVA da eletricidade. O que tem a energia que tanto atrai enguiços ao PS e ao PSD? Tem uma empresa privatizada que lucra milhares de milhões com rendas que nos são cobradas na fatura da luz. Por causa disso, tem a segunda fatura mais cara da Europa e os maiores níveis de pobreza energética, ou seja, os pobres passam frio. Tem um presidente que ganha 6800 euros por dia. E tem o pior da promiscuidade e da porta giratória entre o bloco central e os interesses económicos das grandes operadoras energéticas, os seus acionistas e os seus gestores.

Este é um triste episódio que marca o final do debate do Orçamento para 2019. Seja qual for o jogo, ninguém reconhece grande dignidade às vitórias de secretaria. Gostar de ganhar por simpatia do árbitro, por artifício das regras ou por capricho administrativo é coisa de batoteiro. Mas isso é no jogo. No parlamento, utilizar discricionariedade administrativa para impedir uma proposta de ir a votos é uma artimanha que deixa a muito a dever à prática democrática e quase nada à cobardia política.

Artigo publicado no jornal “I” a 29 de novembro de 2018

Sobre o/a autor(a)

Deputada e dirigente do Bloco de Esquerda, licenciada em relações internacionais.
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