A cada derrota da esquerda – e têm sido algumas – debatemos, e bem, onde estamos a falhar. os debates foram retomados a propósito da eleição de Trump. Entre outros tópicos, há dois, ligados entre si, que surgem de forma recorrente: a disputa das redes sociais e a forma de a esquerda se comunicar. Correndo o risco de parecer menosprezar estas duas questões – o que não é o caso – gostaria de, nas linhas que se seguem, as problematizar.
Enleados nas redes. Estamos a perder a batalha nas redes e temos de recuperar terreno, sem dúvida. Adaptar a linguagem, usar a nosso favor a comunicação compartimentada, aprender com experiências positivas da esquerda em vários países – tudo isto é essencial. Mas há que partir de uma premissa: as redes sociais têm um caráter de classe. Não são “neutras”, passíveis de ser hegemonizadas pela esquerda. São máquinas de extração de mais-valia e de controlo comunicacional na mão de algumas das maiores empresas capitalistas do mundo. Não se trata apenas da censura que fazem a conteúdos progressistas – veja o caso das publicações de apoio à Palestina no Instagram – ou da promoção consciente do discurso de ódio pelos seus detentores – vide o uso do X por Musk. Não é uma teoria da conspiração, não são calabouços informáticos em que os conteúdos de esquerda são censurados. É o mecanismo da coisa, desenhado de raiz à medida da ideologia dominante. A lógica de compartimentação, simplificação, câmara de eco e “clickbaitismo” distorcem os conteúdos, garantindo maior alcance a abordagens maniqueistas, imediatistas e individualistas. A construção do algoritmo, a partir de centros de poder e privilégio, introduz vieses que garantem maior visibilidade a ideias reacionárias. A lógica de bolha leva a que, mesmo quando se obtém sucesso, se tenda a falar para convertidos ou, pelo menos, simpatizantes, sem disputar novos públicos. E, acima de tudo, o domínio da direita nas redes é o do dinheiro. A produção qualificada de conteúdos exige tempo e profissionalização, a extrema-direita investe milhões a contratar quem o faça ou a pagar a influencers para que promovam as suas ideias. Sem patrocínios milionários nem mecanismos de autofinanciamento fortes, a esquerda não tem como competir.
Resulta daqui que não devemos disputar as redes? Não, antes concluo duas coisas. A primeira: esta disputa tem um limite, dado ser feita no terreno do inimigo; não escolhemos as arenas em que travamos as lutas, mas temos de saber se jogamos em casa ou não. A segunda: o sucesso nas redes não nasce de brilhantismo técnico ou de uma atenção desmesurada que lhes possamos dar; nasce da capacidade militante, de iniciativa a partir de baixo, de autonomia financeira da esquerda e dos movimentos sociais, da capacidade de unir forças entre partidos, movimentos e sindicatos para, também aqui, escalar a capacidade de intervenção. É do trabalho de base e da organização que nascerão os sucessos nas redes, mais do que o inverso.
A ditadura do concreto. O debate sobre o sucesso ou o insucesso da esquerda cai muitas vezes no debate sobre a forma como comunicamos. Não é incomum ouvir-se que há excesso de teoria ou de “intelectualização” – somos pouco “concretos”. Também acontece concluir-se que a esquerda não consegue comunicar com “as pessoas” (conceito abstrato, nada concreto) porque está demasiadamente centrada em “teorias”, nomeadamente em algumas que estariam já datadas. Será mesmo? Será que a teoria, marxista e não só, tem hoje mais peso na atividade da esquerda do que nos anos 60, 70 e 80, em que as ideias de esquerda eram mais hegemónicas? Será que os partidos e movimentos estão centrados em cursos teóricos, leituras de clássicos do século XIX, ou na divulgação de conceitos abstratos? Regra geral, não. Tendencialmente, acontece o oposto: a pressão dos ciclos eleitorais, da atividade sindical e das lutas sociais, tende a impor uma agenda imediatista, pragmática, “realista”. Os horizontes recuam e a imaginação estratégica diminui, e com ela a análise teórica tende a dar lugar ao empirismo. Agimos mais do que refletimos. O erro da esquerda está muito longe de ser falar demasiado de Marx, Lenine, Fanon ou Angela Davis. Há, sim, uma parte da esquerda demasiado enquistada na academia – mas esse é mais um problema político-social do que outra coisa. Pelo que arriscaria a ir contra a corrente: precisamos de mais reflexão, de mais análise teórica, de mais pensamento estratégico. Ou seja, não somos demasiado “complicados”, somos, antes, simplistas demais. Isto dito, há que perceber que, para quem quer transformar o mundo, a teoria é sempre parte de uma prática; não só está ao serviço da ação, depende dela para se desenvolver, e vice-versa. A teoria não é, centralmente, a nossa mensagem para fora; antes é o laboratório em que essa mensagem é preparada. Para a mensagem ser simples não pode ser pensada de forma simplista.
Em casa, para acender a luz, tenho que saber usar um interruptor, não preciso de conhecimentos de engenharia eletrotécnica – um interruptor que me exija isso é ineficiente. Contudo, concluir isto não nos permite dispensar a formação de engenheiros e o estudo da física. Para construir uma base social entre quem trabalha, precisamos de políticas socialistas, que tenham capacidade mobilizadora por responderem às necessidades imediatas de milhões de pessoas, ao mesmo tempo que apontam para a rutura com o capitalismo. Isso não se improvisa, nem será fruto do brilhantismo de alguns líderes. É o resultado do pensamento coletivo de centenas ou milhares de ativistas, militantes e quadros – engenheiros da política da esquerda – que, para tal, devem ter formação teórica. Creio que aqui, falhamos por falta, não por excesso.
A armadilha Felipe Gonzalez, agora no século XXI. Terá sido Felipe Gonzalez, dirigente histórico do PSOE, o partido “socialista” espanhol, a dizer que preferia ter dez minutos de televisão do que dez mil militantes. Não por acaso, foi um dos protagonistas da moderação da social-democracia, rumo à sua conversão (neo)liberal. Nos anos 80, a capitulação da esquerda moderada transformava os partidos em plataformas eleitorais, sem inserção nas bases populares, focados no desempenho mediático. Há o risco de que a atual vaga da extrema-direita exerça uma pressão semelhante, sendo que as redes sociais seriam agora o espaço (ainda mais minado) para onde a esquerda se vê a recuar, convencida de que avança. Aliás, pensar os caminhos da esquerda a partir da forma e dos meios da comunicação já denota esse deslize inconsciente, porque subalterniza a política – o que comunicar – que é, necessariamente, o cerne da questão.
Termino com o alerta com que iniciei estas linhas: daqui não se depreenda que não temos de investir na disputa das redes nem na renovação das formas como nos comunicamos. Mas não esperemos que daí resulte a inversão da correlação de forças de que precisamos na luta contra o fascismo. É de uma política socialista audaz, da revalorização da estratégia revolucionária e da teoria marxista, da organização de base, da unidade das forças de esquerda que nascerão as possibilidades de avançar: no terreno eleitoral, na mobilização de rua… e nas redes sociais.
