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Balanço para esquecer
Entre 26 e 30, escondidos entre o dia de Natal e o da passagem de ano, contam-se 5-dias-5, à moda de balanço das duplas de palhaços de circo, acerto de contas sem "yin" nem "yang", sem rei nem roque, sem auditoria que afiance. O gato não vai às filhós pela pressa do exame mas a apreciação do ano colide com humores e não respeita a história: não há julgamento que resista a um par de meses, não há esquecimento que não assome a partir do dia 1. Na corda bamba, em balanço. Há menos vida nova no ano novo do que a nossa curta memória faria supor.
Não fosse a quadra natalícia propensa ao perdão e à bonomia, e o aproveitamento político nos balanços de fim de ano seria assunto de faca e alguidar. Ainda assim, há quem tente bem e com afinco. Descontextualizar as palavras de António Costa sobre este ano ter sido "particularmente saboroso para Portugal", frase proferida no contexto europeu acerca do quadro económico-financeiro, é um exercício penoso de demagogia em tudo semelhante àquele que anunciava suicídios após a catástrofe com doses massivas de hesitação e irresponsabilidade. O balanço açucarado pela quadra festiva dá para tudo um pouco, oscilando entre quem opte por queimar o açúcar no creme de leite ou em corrida-bpm de passadeira. Lá está. Imaginem agora uma analogia com incêndios. Excessivo. Ao sabor do vento que queima, navega a Oposição pela direita ainda à procura de um leme para timoneiro a eleger. As vítimas dos incêndios, as que foram e as que estão, bem dispensariam o aproveitamento político que tantas vezes se faz da sua desgraça.
Da canção interpretada por Salvador Sobral e das catástrofes de 17 de Junho/15 de Outubro, se fará o filme de 2017 no juízo da história portuguesa. Não só mas também. Alguém lembrará Centeno e Ronaldo (os dois até se confundem, diz Herr Schäuble), o Infarmed ou a química doentia de vasos comunicantes hospitalares nos surtos de sarampo-legionela-hepatite A. Alguém recordará Tancos e Almaraz, a nossa Inês Henriques marcha de ouro ou os km de estrada em marcha lenta a contar árvores queimadas. Alguém, com memória assombrosa, lembrará os derrotados das autárquicas. Alguém evocará a visita do Papa ao nosso pedaço de terra santa pelo centenário ou a tardia acusação a um ex-detido-ex-primeiro-ministro. Alguém relembrará que alguns tentaram aportar vulgaridade aos afectos de um presidente ou que houve juízes adulterados pelo juízo de género. Mas, ainda que maldita, faz-se arte do que os nossos olhos vêem e os nossos ouvidos ouvem. Ficarão para sempre. Entre o poder da imagem de Dante e o poder do som dos anjos, a canção-tirocínio da passagem 17/18 pode bem amar pelos dois. Mas vai esquecer quase tudo o que sobra no brinde final.
Artigo publicado pelo “Jornal de Notícias” em 27 de dezembro de 2017
Comentários
Fantástica visão Miguel
Fantástica visão Miguel Guedes, um quadro pintado com palavras molhadas certamente depois das tragédias, o povo recorda a tragédia, a política recorda o que de bom pode ter sucedido no ano de 2017, eu sou dos que olham para as palavras pintadas neste quadro com a água das lágrimas de um povo que sofreu, perdeu e morreu, e que tardará a ser recompensado por isso. O êxito supérfluo da economia portuguesa parece querer limpar da memória as tragédias, os falhanços, os negócios mal explicados, recordemos o Infarmed, os CTT, o caso Santa Casa Montepio, aqueles que tiveram que abandonar o país em busca de algo melhor.
O português é um povo forte e certamente saberá contornar as dificuldades que 2017 nos deixou.
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