A inexistência de uma política pública estruturada e contínua, de democratização do acesso à cultura e da criação artística, coloca o setor cultural numa posição de fragilidade e intermitência, na dependência cíclica de apoios tão seguros como uma lotaria. As reivindicações por uma garantia de dignidade mínima arrastam-se ao longo dos anos: a dotação de 1% no orçamento do estado, a regulação laboral, a proteção social de quem trabalha no setor, os apoios que nunca chegam para todos e que são espelho da desigualdade e fragmentação territorial (projetos no interior ou em zonas de menor densidade populacional são menos apoiados).
Mas a cultura é também o vértice social mais resiliente, aquele que teima em não parar, que persiste em se reinventar e dar tudo o que na verdade não tem, sem o reconhecimento que lhe é merecido e devido. Existir é por si só, para muitos projetos culturais, um ato de protesto.
Quando se agrava a mercantilização e concentração da produção, edição e distribuição, com o mercado a ser controlado ou monopolizado por grandes empresas (na música, no cinema, na música, etc.), a cultura pode inclinar-se facilmente para uma natureza potestativa, ao existir aquém das lógicas de um sistema capitalista, possibilitando o envolvimento e construção comunitária e multidisciplinar, e ainda ao ocupar um espaço não material, “do nada”, de liberdade crítica, de desenvolvimento de ideias e pensamento, um espaço que não cabe nos mapas de numa sociedade que sobrevaloriza o produto, o material, o concreto, o previsível, comercializável e vendável em massa.
Esta faceta da cultura/ protesto é visível nalguns festivais e festas do nosso verão. Não no grande festival “copy paste”, terreno de bombardeamento publicitário e palco de uma oferta hegemónica e desenraizada. Refiro-me ao pequeno festival que busca a valorização da cultura do oprimido, das criações de quem é silenciado pelo poder, de referências estéticas e culturais alternativas. Considerando a sua natureza ritualística, estes lugares de cultura são também uma forma de luta contra a opressão; lugares onde se esbatem diferenças e se aprofunda o diálogo sobre as desigualdades mais profundas (classe, género, desigualdade étnico-racial), esbatendo-se as fronteiras imaginárias da ideia armadilhada de uma identidade determinista; lugares de uma experiência de inversão social, com a abolição, mesmo que temporária, dos códigos e estruturas de poder que enquadram as relações sociais.
Estas são expressões culturais e festivas longe das prioridades de apoio e divulgação. Pelo contrário, através da divulgação e apoios dados, estado e autarquias, por um lado, criam uma hierarquia, também espelhada territorialmente, construindo uma falsa elite cultural. Por outro, promovem, com verbas destinadas à cultura, o “foguetório”, através de grande eventos efémeros, adereços promocionais ao serviço do turismo e dos interesses imobiliários, com pouca relação e envolvimento da comunidade onde se inserem e à qual nada deixam.
Cultura não é isso. Cultura são as voltas que ficam no intervalo do baile.