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Aventuras no 727

Vai-me perdoar que lhe conte um segredo. E que lhe apresente queixa de como isto está difícil, nunca mais há resultados, prometeram muito e não acontece nada. É que eu apanho o 727 para ir para o trabalho e é sempre uma aventura.

Há muitos anos que uso este autocarro. É o que me leva de casa à faculdade, era também o que me levava ao parlamento, são um ao lado da outra. Já deve estar a ver, é o que atravessa as avenidas principais de Lisboa, vai ao Rato, desce a Rua de S. Bento e segue para os Jerónimos. Por isso, em tempo de aulas, há milhares de estudantes que o frequentam, além de trupes de turistas, com os seus sacos e mochilas, ou mesmo com as suas malas, os que vão para os pastéis de Belém, para os monumentos ou para o apartamento que alugaram na Madragoa. Acredite que é mesmo uma aventura conseguir entrar naquele autocarro.

Primeiro, é preciso que o autocarro chegue. Nas paragens vão-se acumulando pessoas e mais pessoas, o horário é mentira. De 14 em 14 minutos, isso talvez em dia de euromilhões. Há mesmo um painel eletrónico que está lá para nos provar que o horário é um poder absoluto, ou como se diria na Alice no País das Maravilhas, o tempo é quando ele quiser que seja. Mas o maroto do painel tem truques: diz que faltam três minutos, tudo a correr bem, diz que faltam dois minutos, tudo ótimo, depois passa a anunciar que faltam 19 minutos e pimba, ficamos apeados e nem passou nenhum autocarro.

Depois, se passar, pode não parar. É até frequente que não pare, vai cheio. Se calhar a sorte, o motorista abre a porta de trás para saírem alguns passageiros e a malta precipita-se aos empurrões para essa nesga de oportunidade, dois ou três lá caberão e segue viagem. Se não, esperar pelo próximo e o painel eletrónico vai voltar a mangar comigo.

Se acabo a aula à noite, então haverá lugar. Não há é autocarro: se tiver passado um há pouco, o próximo vai demorar uma eternidade, já me aconteceu esperar meia hora. Na dúvida, o painel dos anúncios costuma calar-se, também seria de pouca utilidade porque seria mentira.

Perguntando aos motoristas o que se passa, explicam-me o óbvio: menos carros, menos pessoas a trabalhar e mais turistas nesta linha. Pois é, é o que os números confirmam: os autocarros da Carris eram 832 em 2003, mas já só eram 707 em 2011 e, no glorioso período da troika, reduziram-se para 603, perdeu-se um quarto da frota. Continuam agora os mesmos 603, anunciando-se que haverá mais dentro em breve mas, como a frota é cada vez mais velha, alguns dos atuais apodrecerão (há 76 autocarros com mais de 16 anos, a idade média passou de 6,6 anos em 2010 para cerca de 12 agora, ou seja, em média a frota já devia estar na sucata).

Resultado da incomodidade e dos atrasos, graças à falta de oferta pela Carris, os passageiros fogem para alternativas, aumenta o uso do automóvel privado. O governo das direitas conseguiu o resultado notável de fazer a Carris perder.

39 milhões de viagens (depois a queda continuou mais devagar, perdeu mais três milhões). O facto é que a Carris não tem nem carros nem condutores. No período PSD-CDS, ou entre 2011-2014, perdeu 493 funcionários, quase todos na circulação (419), a oferta caiu 25% e a procura caiu 24%. Desde 2002, a Carris perdeu quase metade dos funcionários. Agora, com a municipalização, finalmente conseguida, há mais 42 trabalhadores na circulação (mas ainda saíram mais 86 funcionários), mas os autocarros cuja aquisição está programada nem os 220 novos condutores previstos até 2019 só cobrem uma pequena parte das necessidades. Vai continuar a ser um tormento.

E não vos falo do desastre do Metropolitano, nem do que se passa nos transportes públicos noutras partes do país. Basta de desgraças e aventuras por hoje. Suspeito mesmo que no 727 vamos continuar como sardinhas.

Artigo publicado em blogues.publico.pt a 4 de agosto de 2017

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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