Autodeterminação dos Povos? Que protagonista?

porImmanuel Wallerstein

07 de fevereiro 2011 - 0:00
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A verdadeira questão é autonomia versus secessão das chamadas minorias. Uma é melhor que a outra? Não há uma resposta geral a essa pergunta.

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Um dos mantras orientadores do século XX foi a auto-determinação dos povos, das nações. Era uma devoção à qual todos aderiam em teoria. Mas, na prática, era um assunto muito delicado e nebuloso. A dificuldade fundamental era determinar quem era o protagonista, o povo, a nação que teria direito a determinar o seu próprio destino.

Nunca houve acordo sobre este tema. No caso das colónias, era uma questão relativamente simples. Mas, no caso de um Estado já reconhecido como soberano, as opiniões dividiam-se muito, às vezes até violentamente. A questão está neste momento nas manchetes por causa do referendo no sul do Sudão, onde o “povo” está a decidir se quer continuar a ser parte do Estado chamado Sudão, ou se prefere constituir um novo Estado separado do Sudão.

Em todos os estados, sem excepção, há os que, no poder do Estado, defendem o que chamamos de posição “jacobina”. Sustentam que todos os cidadãos deste Estado constituem uma nação, que já determinou o seu destino. Falamos de estados-nação, como se o princípio jacobino fosse uma realidade, em vez de uma aspiração política. Os jacobinos dizem que o Estado devia ser reforçado e fortalecido, recusando-se a reconhecer o direito, a legitimidade de qualquer grupo intermediário a interpor-se entre o Estado e os cidadãos. Todos os direitos ao indivíduo; nenhum direito a grupos.

Ao mesmo tempo, em cada estado, mais uma vez sem excepção, existem outros – muitas vezes chamados de “minorias” – que contestam essa ideia. Dizem que a posição jacobina esconde o interesse de algum grupo "dominante", que mantém os seus privilégios em detrimento de todos aqueles que pertencem a grupos diferentes do dominante. As minorias (que muitas vezes, mas nem sempre, compreendem, de facto, a maioria numérica da população) argumentam que, a menos que os direitos dos grupos sejam reconhecidos, é-lhes negada a igualdade de participação no Estado.

Quais são os "direitos" que essas minorias sentem que lhes estão a ser negados? Por vezes são os seus direitos linguísticos, o direito de ter uma prática jurídica, uma educação e meios de comunicação numa língua diferente da "oficial". Às vezes, são os direitos religiosos, o direito de praticar abertamente uma religião diferente da oficialmente reconhecida, e de conduzir os seus assuntos civis sob leis religiosas que são parte da sua própria religião. Às vezes, são os direitos fundiários, os direitos dos grupos proprietários de terra sob regras tradicionais diferentes das leis do Estado.

Há duas estratégias para assegurar os direitos dos grupos minoritários. Uma delas é chegar a uma autonomia oficialmente reconhecida em várias esferas da vida social e jurídica. A segunda, se o grupo ocupa uma área geográfica relativamente compacta, é buscar a secessão, ou seja, criar um novo Estado. Para muitos grupos, trata-se de alternativas entre as quais se podem mover. Não tendo conseguido alcançar a autonomia, poderão procurar a secessão. Ou tendo visto as suas aspirações à secessão derrotadas politica e/ou militarmente, podem contentar-se com a autonomia.

Os curdos na Turquia, assim como os do Iraque, tendo lutado pela secessão, parecem agora dispostos a aceitar a autonomia. Tal como, ao que parece, os francófonos do Québec. O povo do sul do Sudão foi na direcção oposta, assim como os kosovares na Sérvia.

A questão crucial é que esta nunca é uma questão meramente interna de um determinado estado. Para se ser um Estado soberano, é preciso ser-se reconhecido por outros Estados soberanos como entidade legítima. Hoje, a República Turca do Norte do Chipre é reconhecida por apenas um outro estado. Não pode, por isso, aderir a organizações internacionais, mesmo se continua, de facto, a controlar o seu território.

Quando o Kosovo proclamou a sua independência, foi reconhecido apenas por menos da metade dos membros das Nações Unidas. Temos, então, de perguntar porquê e por que estados? Houve alguns estados europeus, mas também de outras partes (nomeadamente a China e a Rússia), que temeram o precedente aberto. Disseram que, se os kosovares pudessem declarar a independência unilateralmente, grupos semelhantes nos seus países poderiam tomar essa declaração como um precedente. Os Estados Unidos e certos países da Europa Ocidental, porém, acharam que a independência do Kosovo em relação à Sérvia servia os seus interesses geopolíticos e incentivaram os kosovares a proclamar a independência, que imediatamente reconheceram, e a quem dão apoio material e político.

Quando o Biafra tentou separar-se da Nigéria há várias décadas, quase todos os estados africanos apoiaram os esforços do governo nigeriano para reprimir militarmente a rebelião. O seu principal argumento foi que a secessão do Biafra seria um precedente terrível na África, onde quase todas as fronteiras de estado foram delineadas arbitrariamente por ex-potências coloniais e, de facto, atravessando as linhas étnicas. Os estados africanos queriam preservar as fronteiras existentes, por mais "artificiais" que parecessem, como a única garantia de ordem colectiva.

Parece que o referendo no sul do Sudão vai produzir uma votação esmagadora pela secessão1. E os estados africanos que não reconheceram o Biafra, mais a China que não reconhece o Kosovo, vão quase certamente reconhecer o novo Estado que está agora a ser criado. Na verdade, até mesmo o estado a partir do qual a secessão está a acontecer parece estar disposto a reconhecer o novo estado.

Por quê? A resposta é simples. Há razões geopolíticas que o explicam. A China está interessada em boas relações futuras com o novo estado, que será um grande exportador de petróleo. O interesse na compra de petróleo parece ter prioridade sobre a preocupação com um precedente para os grupos separatistas na China. O Sudão parece disposto a reconhecer o novo estado porque os Estados Unidos prometeram mudanças específicas na sua própria política para o Sudão, se este permitir que a secessão ocorra pacificamente. Os estados africanos estão confundidos pelo acordo de facto entre os dois lados desta controvérsia. E, além disso, muitos deles simpatizam com os grupos do sul do Sudão, que são povos nilóticos confrontados com um governo dominado por povos árabes.

No século XXI, a opção jacobina está em retirada na maioria dos países. A verdadeira questão é autonomia versus secessão das chamadas minorias. Uma é melhor que a outra? Não há uma resposta geral a essa pergunta. Cada caso é diferente, de duas maneiras. A demografia e a história reais de cada Estado são diferentes e, portanto, é diferente o que é logicamente melhor e mais justo. Seja como for, qualquer novo Estado resultante da secessão vai imediatamente descobrir "minorias" dentro das suas fronteiras. O debate não termina nunca.

Mas há uma segunda questão. Autonomia versus secessão têm consequências geopolíticas. E estas são cruciais em termos das lutas em curso no sistema-mundo como um todo. Todas as partes lutam, cinicamente, pelo seu próprio interesse como estados. A sua forma de actuação pode ser bastante diferente de uma situação para a outra. Isto é assim porque os poderes externos estão principalmente preocupados com o impacto geopolítico da decisão. Mas é o papel destes poderes externos que é muitas vezes decisivo.

Immanuel Wallerstein

Comentário n.º 297 de 15 de Janeiro de 2011

Tradução para o Esquerda.net de Luis Leiria, revista pelo autor.

1 No referendo, cujos resultados foram anunciados em 30 de Janeiro, 98,83% dos eleitores votaram a favor da separação da região Sul do Sudão. O vice-presidente do Sudão, Ali Osman Mohamed Taha, declarou que o governo sudanês aceita o resultado.

Immanuel Wallerstein
Sobre o/a autor(a)

Immanuel Wallerstein

Sociólogo e professor universitário norte-americano.
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