O pagamento de impostos é um inconveniente, certamente para quem tem mais capacidade de impor subterfúgios fiscais e, portanto, poder para organizar o seu privilégio. Dois casos atuais revelam um esplendoroso universo de manha, em ambos com intervenção de autoridades públicas.
A empresa que dirige os futebolistas nacionais
O primeiro é a saga dos impostos de Fernando Santos, o polémico treinador da seleção nacional, que atingiu os píncaros da comédia com os queixumes do próprio e da Federação Portuguesa de Futebol (FPF) contra a decisão do tribunal arbitral que deu razão ao fisco, que reclamava €4 milhões de IRS de 2016 e 2017. Segundo a imprensa, terá sido um escritório de advogados, a Morais Leitão, a propor à FPF o esquema; os mesmos advogados indicaram agora um dos três árbitros que, naturalmente, votou contra o fisco, e perdeu. Santos usou quatro argumentos em sua defesa: que “a empresa não é fictícia”, pois já existia, que o esquema era conhecido, que é um “gestor” de equipas e por isso se justificaria pagar IRC mais baixo do que o IRS sobre o salário e, finalmente, que já pagou o que acha que não devia. Mesmo assim, reclamar o não pagamento do IRS cria um mistério: como a empresa de Santos pagava o salário de Santos, Santos teria de o declarar como salário em IRS, a não ser que reivindicasse, e esse parece ser o estratagema, que o rendimento era de dividendos da empresa, para baixar a conta.
Raramente se terá visto uma teoria do mercado tão quimicamente absurda: neste mundo fantasioso, seria o CEO da empresa que alinharia os jogadores para o jogo ou que procederia às substituições necessárias, ou seria o seu CFO que os animaria no intervalo para empatarem a partida? Haveria lugar a licitações para o concurso para ganhar a concessão de selecionador? O que se pode ainda perguntar é quantos outros esquemas são criados pelos departamentos mágicos destes escritórios de advogados.
Para quê cumprir a lei?
O segundo caso, que tem uma dimensão maior do que o primeiro, é o da zona franca da Madeira, em que vigora até 2027 um regime fiscal especial, que permitiu IRC a 0% e agora impõe uma taxa de cerca de um quarto do pago pela generalidade das empresas. No seu tempo da glória do IRC a zero, a nossa maior empresa exportadora nacional chegou a ser a Wainfleet, um biombo do gigante russo do alumínio, a UC Rusal, que declarou em 2007 lucros de três mil milhões, se bem que só tivesse quatro funcionários numa sala no Funchal e não tratasse um grama de metal — era um simples esquema de fuga aos impostos e foi festejado em Portugal.
O problema foi que isto era demasiado espaventoso e inútil. Além disso, era uma prova de estupidez fiscal: para quê favorecer uma empresa que não paga impostos em Espanha ou no Brasil e não ganhar um cêntimo com isso? Por isso, o caso começou a ser incomodativo para as empresas que pagam impostos e para a opinião pública, razão pela qual o seu custo fiscal passou a ser ocultado: se bem que as regras de transparência obriguem o governo a publicar o valor do IRC perdido em função deste benefício, tem sido prática comum esconder o número (quando revelado, tem estado entre 600 e mil milhões). Para remediar o irremediável, as regras nacionais e as da União Europeia foram apertadas, só teriam acesso a IRC de favor as empresas que criassem emprego na região, dado que a justificação do benefício era favorecer o crescimento numa ultraperiferia.
O que se pode ainda perguntar é quantos outros esquemas são criados pelos departamentos mágicos destes escritórios de advogados
Meu dito meu feito, mas a regra, obviamente, não era para cumprir. Só que a Comissão interpôs uma queixa em tribunal contra a zona franca e a sentença foi a esperada: 311 empresas têm de devolver os benefícios que pagaram entre 2007 e 2020, mais de €1000 milhões, por não terem um único funcionário, ou seja, a sua localização na Madeira era uma fantasia fiscal. Estão a ser notificadas, sob enérgicos protestos do governo, que atrasou estes procedimentos, enquanto recorria da sentença e procurava impedir a sua aplicação, e do presidente regional. Miguel Albuquerque, com uma candura que é só dele, explica que a lei que exige a criação de emprego na Madeira não deve ser aplicada: “Vai contra aquilo que é o espírito das ajudas de Estado à zona franca, que é exatamente a internacionalização e diversificação das economias regionais ultraperiféricas”, dado que, “se os trabalhadores devem estar fixados na região, não há possibilidade de internacionalizar as empresas porque eles têm de se deslocar”. Ou seja, o que é bom para a Madeira é que estas empresas não tenham de criar emprego, seria uma abominação que os trabalhadores fossem contratados para o efeito, na região ou vindos de fora dela. Foi deste modo, como revelou João Pedro Martins no seu “Suite 605” (2011, edição AENL), que chegaram a estar ficticiamente instaladas mil empresas num apartamento de 100 m2 no centro do Funchal e dois homens podiam declarar gerir 821 empresas, que assim pagaram menos impostos.
Estes dois casos revelam um nexo de cumplicidade entre equipas especializadas nesta criatividade jurídica, instituições e decisores políticos, que se juntam para promover o abuso fiscal. Assim vai continuar, mas façam-nos o favor de não tomar os contribuintes por parvos.
Artigo publicado no jornal “Expresso” de 7 de outubro de 2022