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A assombração dos ‘PECistas4’

Vale a pena perguntar qual a razão por que o Governo nunca discutiu os PEC com a esquerda. Foi por saber que com a esquerda não havia negociação possível de uma estratégia tão cruel.

Há aqui uma estranha lei de bronze: quando um Governo PS se mete em bolandas — neste caso um ministro numa cena de rufias e promovido por isso —, aparece algum advogado da maioria a garantir que o cerne da questão é a recusa do PEC IV pela esquerda há 12 anos. Que os fiéis do então primeiro-ministro sonhem com uma idade de ouro em que esse Governo navegaria até hoje, isso é elogiável como fidelidade mística. Mas quando Miguel Sousa Tavares na última edição do Expresso pretende fazer disso uma teoria universal, já pode ser algo excessivo. Manda a verdade dizer que isto é uma assombração e que António Costa, mais fino do que o seu advogado, aparte algum protesto que então esboçou em prol do governante cuja queda desejava, jamais repetiu essa tese sobre a indispensabilidade do PEC IV e por razões evidentes: chegado ao seu momento, não queria que o PS fosse visto como o partido que cortava as pensões e, ao assinar a ‘geringonça’, que foi o programa anti-PEC, comprometeu-se a fazer o contrário do que o PS antes promovera. É por isso que a recuperação da questão PEC é somente uma extravagância de quem detestou a ‘geringonça’, caso de Miguel Sousa Tavares, ou que arrasta pela sua vida um rosário de contas a ajustar, o que faz mal à saúde.

E que tal uma conta de somar?

O chumbo do PEC IV teve como consequência “trazer a troika”, escreve Sousa Tavares, pelo que o Bloco de Esquerda devia ter aprovado o programa, e disso me acusa. Descontando a bizarria de pensar que um partido deve romper o seu compromisso com os eleitores e aprovar o que garantiu que combateria, ou que, depois de ter negociado os PEC I, II e III com o PSD, o Governo, dado ter fracassado um novo acordo, se poderia virar para a esquerda e comandar a sua obediência para um texto pior, creio que a matemática de Miguel Sousa Tavares o devia ter guiado melhor: renegasse o BE o seu mandato e o PEC era chumbado na mesma.

Ora, vale a pena perguntar qual a razão pela que o Governo nunca discutiu esses PEC com a esquerda. Honra lhe seja feita, foi por saber que com a esquerda não havia negociação possível de uma estratégia socialmente tão cruel. Essas medidas incluíam corte em pensões em pagamento, redução de salários, corte de €440 milhões no SNS, de €450 milhões na escola pública, de €300 milhões nas prestações sociais, a flexibilização dos despedimentos e a redução da sua indemnização, a privatização dos Aeroportos, TAP, CTT, Caixa Seguros, Galp, EDP e REN, EMEF, Estaleiros Navais de Viana ou transportes suburbanos, expulsão de inquilinos e ainda aumentar o IRS e o IVA. É este PEC que Sousa Tavares acha que a esquerda tinha de aprovar. Isso conduz a contradições: a mais intrigante foi ver o Governo PSD-CDS a assinar a venda da EDP com um membro do Comité Central do PC chinês, e não menos curioso é ver agora Miguel Sousa Tavares, fervoroso defensor da TAP pública, a dar por certo que devia ter sido vendida em 2011. A coerência tem dias.

Os mercados financeiros sabiam da fragilidade da dívida portuguesa e, como o BCE se recusava a apoiá-la, tinham luz verde para cobrar qualquer juro

O argumento de que assim se evitaria a vinda da troika é um passo curioso. O problema é que a realidade o desmente: os mercados financeiros sabiam da fragilidade da dívida portuguesa e, como o BCE se recusava a apoiá-la, tinham luz verde para cobrar qualquer juro. Nenhum corte de pensões mudaria a ganância desses juros e cria alguma vergonha alheia que pessoas que vivem no mundo possam alegar que os mercados se encheriam de piedade e protegeriam as contas de Portugal, quando as autoridades europeias não o faziam.

O PEC e a troika

Mas poderia o PEC IV salvar-nos de um programa como o da troika? O Expresso de 3 de maio de 2011 titulava: “O primeiro-ministro afirmou que as medidas de austeridade serão no essencial as previstas no PEC IV”. E dizia ainda que nada era acrescentado ao programa orçamental para 2011 e que as medidas laborais seriam as já previstas pelo PS. Poul Thomsen, chefe de missão da troika, garantiu que o PEC IV “era um bom ponto de partida”. Como assim? Então não mergulhámos numa tragédia com a recusa da austeridade do PEC IV, afinal as medidas desse programa e da troika eram as mesmas? Se o advogado do PEC IV consultasse o arquivo teria o desgosto de saber que o Governo de então derrubou a sua tese.

O problema é que há uma voz muito mais potente do que a do derrotado Governo que desmente Sousa Tavares e que assegura que a troika tinha de se instalar em Portugal em qualquer caso: é o próprio Sousa Tavares, a autoridade definitiva nesta matérias. Escreveu ele a 1 de dezembro de 2018 no Expresso: “Com 10% de défice público, juros de 7% do serviço da dívida e os cofres vazios, o Estado português, pura e simplesmente, estava falido: era a troika ou não teria dinheiro para pagar salários da função pública, para fazer funcionar os hospitais, as escolas, pagar aos polícias, aos juízes e aos militares, honrar as pensões devidas. (…) Foi pela iminente bancarrota do Estado, que há vários anos estava no horizonte e para a qual muitos vinham chamando a atenção em vão.” Repita por favor? Então havia uma bancarrota iminente “há vários anos”, o Estado “pura e simplesmente, estava falido” e portanto “era a troika ou não teria dinheiro”, e agora a culpa foi da esquerda por não ter aprovado cortes de pensões?

Como conclui Miguel Sousa Tavares, desta vez com siso, “uma das coisas que mais me espanta neste país nem são aqueles que têm, ou fingem ter, falta de memória: são aqueles que descaradamente apostam na falta de memória dos outros”. Escrever sobre o PEC de há 12 anos para distrair a degradação política de hoje dá nisso.

Artigo publicado no jornal “Expresso” a 19 de maio de 2023

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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