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Apocalipse, não?

Quando Greta Thunberg, adolescente sueca, iniciou a sua cruzada pela consciencialização sobre as alterações climáticas, era apenas uma curiosa miúda com asperger de peluche, opiniões certeiras e um desenvolvimento comunicacional exuberante. Não transportava qualquer perigo.

Em agosto de 2018 não era um pin e apelava à greve na escola em nome da luta pelo clima. Não passou muito tempo. Há cerca de um ano, estávamos longe de imaginar que podemos vir a estampar massivamente o seu rosto em t-shirts nas próximas décadas, como se de um Che Guevara do século XXI se tratasse, uma revolucionária com outra guerrilha, portadora de prematura contemporaneidade e na posse de tranças.

Greta é um produto das suas opiniões e do seu carácter. Da passagem em protesto no exterior do Parlamento sueco a ícone, foi um ápice. Logo, a multiplicação do capital de ódio dos seus detractores e, obviamente, o tiro de partida para a perseguição dos cínicos. Era tempo de começar a perseguição e diabolização dos seus pais, acusados de aproveitamento e exploração, eles mesmos portadores de uma agravante de deriva artística: uma mãe cantora lírica e um pai actor. Era o tempo feroz dos negacionistas, ferida aberta a crescer vertiginosamente à medida que o Mundo se alimentava da realidade que uma miúda de 16 anos nos trazia o canto do apocalipse entre lábios.

É muito curioso como nunca vi nenhum daqueles que acusam Greta Thunberg de ser uma menor a soldo da agenda ecológica, questionarem-se por um minuto sobre as crianças que lhes cosem as sapatilhas na África subsariana, na Ásia ou na América do Sul. As complexas questões sobre o trabalho infantil estão esmagadoramente relacionadas com mão-de-obra braçal, subdesenvolvimento, desigualdade social no Mundo e com a miséria. A demagogia sobre a problemática do trabalho infantil tem muita dificuldade em se relacionar com o trabalho intelectual, com o activismo e com convicções. Vivemos uma guerra climática onde se nega a possibilidade de apocalipse. Uns por interesse, outros por doutrinária ignorância no grau zero da terra plana. Na geração que hoje está no poder, há muita gente que aos 16 anos preferiu esconder-se do Mundo para agora não se importar de acabar com ele.

Venham daí então os pins, as t-shirts estampadas, a entronização e o endeusamento. Tragam as luzes e as brilhantinas, o lado certo da História exige-o. É aqui que estamos, confrontados com a necessidade de assumir uma guerra onde a idade adulta da adolescência começa dois anos antes. O maior temor dos negacionistas das alterações climáticas e da sua indústria de "fake news" é o confronto com a disseminação massiva da verdade. É serem combatidos com igual eficácia. É isso que Greta Thunberg faz. Até nos traços de excesso, exemplarmente.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” em 27 de setembro de 2019

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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