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Ao povo o que é do povo

O elogio pangermánico de Durão Barroso ilustra o Conselho Europeu do próximo dia 5. Adiada por força das eleições espanholas, a decisão sobre as sanções a Portugal e Espanha será a primeira tomada de posição política da União Europeia (UE) após o Brexit. Que o ex-presidente da Comissão assuma a chantagem sobre o governo do seu país - “depende muito do que o Governo português agora disser e fizer” - é todo um retrato: já não interessa ajuizar sobre a execução orçamental de 2014 e 2015, apenas assacar a submissão de uma conduta futura. As sanções podem mesmo estar a caminho. Desse acontecimento, muitas serão as consequências nacionais e internacionais e maiores ainda as responsabilidades de quem está disposto a defender o projeto de um país viável.

À direita, o autoritarismo é a única saída

A União Europeia a 28 representa hoje menos na economia mundial (baixando de 34% do PIB mundial em 1980 para 23% em 2015) valendo mais em termos de risco sistémico (40% do comércio mundial e 34% de todos os empréstimos bancários são denominados em euros). Do ponto de vista interno, o mecanismo da dívida como extração direta de rendas garantidas para o centro, transformando os custos do casino financeiro em encargos públicos, e a captura dos bens e serviços na periferia através das privatizações aceleraram o desequilíbrio, fazendo recair sobre os orçamentos nacionais toda a pressão dos cortes. A austeridade cavou um fosso ainda maior entre a soberania democrática e o poder real da UE, bloqueou uma geração de jovens trabalhadores e esboroou a alternância política ao centro. Com o sarilho de uma nova recessão no horizonte, o ordoliberalismo aplicado à gestão da crise financeira fracassou como projeto de poder integrado no bloco europeu.

No tempo de todas as ressacas, a leve esperança do Brexit poder abrir caminho para o "abanão" que a Europa precisa encontrou um Schäuble no meio do caminho. A política do ultimato, apresentada pelo ministro alemão como "lapso" que nada mais é que uma demonstração de força, apenas antecipa o pior cenário: uma UE capturada pela tecnocracia e sujeita a um federalismo orçamental digno do teatro dos horrores em que se transformou o Eurogrupo. Sem força para impor novos tratados, a arbitrariedade das decisões será cada vez mais um jogo de bastidores; o que a estranha cimeira dos 6 países iniciais apenas veio confirmar.

Tudo nos parece dizer que a saída do Reino Unido - embalada por esta mesma comunidade que permitiu a Cameron usar a carta da imigração enquanto assinava o acordo da vergonha com a Turquia - é um sinal de fraqueza que só pode corresponder à agressividade da resposta alemã depois da UE perder a sua principal praça financeira, o seu exército mais poderoso e o mito da irreversibilidade do alargamento. E dúvidas houvesse, percebemos que o Brexit fechou a própria possibilidade de um novo discurso que à direita resgate vagamente a ideia de integração ou de resposta às exigências soberanas, com o PP de Rajoy a advertir desde já Juncker sobre as pretensões da Escócia junto da União Europeia.

Em Portugal, o recém fervor europeísta de Paulo Portas pouco valerá a um CDS que se transformou numa inutilidade parlamentar, o que faz de Passos e do PSD o centro desta tormenta. Nos últimos quatro anos, a direita portuguesa apostou tudo na tutela da troika e na austeridade como programa de governo. Os efeitos são óbvios: com a interrupção do ciclo de austeridade, resta oferecer ao país um projeto de reparação e restituição que flerta com o descalabro orçamental - "olhem para mim, que eu bem avisei". Mas a estreiteza desta estratégia fecha-se com a possibilidade de sanções, cuja fatura será publicamente apresentada como o resultado dos últimos anos, governados pela direita. Passos Coelho pode até não se demitir de líder do PSD, mas dificilmente escapará ao estatuto de zombieda política portuguesa, deixando o seu partido preso à defesa das instituições europeias que massacram o país, seja agora (sanções), seja na pressão futura (orçamento de 2017).

À esquerda, muitas fraquezas e uma alternativa

A razão por que o populismo de alguma imprensa afunilou o resultado do Brexit a uma dicotomia entre o cosmopolitismo tolerante e o nacionalismo xenófobo tem muito que ver com a forma como a esquerda enfrentou este debate. Enquanto toda a ala "Blairista" do Partido Trabalhista alinhou com a estratégia do "ficar" partilhando palcos de campanha com os conservadores e enfeitando uma visão da UE como campo de reformas e progressos sociais, Jeremy Corbyn concentrou baterias na política nacional, apresentando uma pálida e confusa defesa pró-Europa. A incapacidade de ligar uma crítica à austeridade com a possibilidade real de saída, consubstanciada por um programa de esquerda que mobilizasse a base social que permitiu a Corbyn liderar, submeteu o Labour ao campo do "ficar" entregue a uma tática obtusa de transformar o referendo numa espécie de plebiscito ao racismo e à xenofobia depois do assassinato de Joe Cox. Órfãos de uma crítica capaz de responder às ansiedades de uma sociedade massacrada pela austeridade, muito foram os eleitores que se direcionaram para o campo do "sair" e que agora estão no terreno aberto da direita mais repugnante.

Não se trata aqui de negar o peso imenso que a xenofobia teve no Brexit, e que terá num futuro muito próximo na Europa, mas antes de lembrar que o centro e a esquerda moderada têm sido um obstáculo mais do que uma ajuda neste combate. Se quisermos respeitar a nossa inteligência e abdicar de reptos rançosos ("os extremos tocam-se"), poderemos constatar que não só a família socialista subscreveu todos os tratados e medidas de austeridade dos últimos anos, produzindo seres como o sinistro presidente do Eurogrupo, Jeroen Dijsselbloem, e submetendo a Grécia a uma humilhação histórica, como os seus membros estiveram na linha da frente na recusa em reconhecer o caos humanitário no mediterrâneo entre 2010 e 2014, retardando o reconhecimento do estatuto de refugiados aos migrantes que servem agora como bode expiatório da extrema direita. Nada se tem tocado mais intensamente na política europeia do que os conservadores e os socialistas.

A grande mudança é que a gestão do neoliberalismo legou a estes últimos o papel de coadjuvantes na peça europeia. O que antes serviu como bandeira e um programa total, sobretudo nos países do sul onde estes partidos foram dominantes por tantos anos, ligando os processo de integração europeia ao da própria democratização, é agora um problema e um embaraço. Será por acaso que, a uma semana da provável aplicação das sanções, Francisco Assis e seguidores sejam os mais ardentes defensores de um europeísmo pueril? Pelo contrário, defender o conteúdo do acordo à esquerda, como muitos já o perceberam, passa pelo confronto com a UE tal como ela se nos apresenta.

Só podem ter razão os que clamam por um aprofundamento do debate, pelas produção de soluções para o euro e sobre os planos de uma soberania sustentada em soluções tecnicamente fortes. Mas trata-se, acima de tudo, de perceber que a esquerda teve força quando foi capaz de dar conteúdo e movimento popular na luta contra a austeridade. Não foi no referendo que residiu a desgraça do povo grego, mas na incapacidade política de o transformar em política de enfrentamento coerente e alternativo à austeridade da UE.

É isto que afirma hoje quem pugna por um referendo ao Tratado Orçamental. Ele não se fez na primeira hora, mas hoje as suas consequências emergem dramaticamente no contexto agravado pela desintegração da União Europeia. Em vez de recuar sobre essa exigência elementar de democracia, como em tempos fez o bloco central quanto à jura de referendar o tratado de Lisboa, a esquerda deve convocar a democracia para o palco onde se desenrola, a várias vozes, o monólogo do medo.

Sobre o/a autor(a)

Sociólogo, dirigente do Bloco de Esquerda e ativista contra a precariedade.
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