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A angústia do tesoureiro antes do penalti

Entendamo-nos portanto: quem fez a despesa abusiva e a gestão danosa é quem decidiu usar o dinheiro da associação para benefício pessoal. Não há volta a dar. A responsabilidade é essa mesma.

Talvez seja melhor fazer um desenho para que os que se fazem de inocentes percebam o sinuoso percurso da factura de um spa no Brasil. A cliente chegou ao hotel e fez a sua vida, mas depois terá de fazer o check out. A factura é então emitida pelo hotel e inclui várias despesas: a pernoita e os consumos extra, nalguns casos pode ser o pequeno almoço ou uma garrafa de água ou uma sessão de spa. É paga pela cliente com o cartão de crédito. Mas é emitida em nome da associação e, quando a cliente volta da sua viagem, entrega-a à contabilidade. O tesoureiro tem então uma função precisa, registar a despesa. E aqui tem um problema: a pernoita é a despesa da missão estabelecida, mas que fazer com o whisky ou a garrafa de água ou a sessão do spa? O tesoureiro vai verificar as normas da casa: sim, a garrafa de água é incluída nas despesas de estadia, tal como o pequeno almoço. Mais difícil é o caso da tal sessão de spa. Não se qualificam como despesa da viagem e não se justificam em função da representação da associação, pois não? Pois é, essa despesa deve ser imputada à cliente e não ser paga pela associação.

Chegamos ao momento da angústia do tesoureiro: se devolve a conta talvez a presidente se zangue mas ele cumpriu a sua obrigação, se regista a conta a presidente fica satisfeita e ele não cumpriu o seu dever. Pelos vistos, durante anos o tesoureiro da Raríssimas foi pela via mais fácil. E garantiu que a ocultação ficava perfeita: a não ser que o revisor oficial de contas fosse inspecionar esses detalhes, o que bem podia fazer, e reportasse o erro, a conta chegaria à assembleia geral para aprovação com a assinatura da direcção, presidente e tesoureiro incluídos, e ainda com a certificação do revisor, tudo jeitoso. E a assembleia geral lerá simplesmente uma conta agregada, em que o spa desaparece nas despesas de funcionamento corrente. Assunto encerrado.

Entendamo-nos portanto: quem fez a despesa abusiva e a gestão danosa é quem decidiu usar o dinheiro da associação para benefício pessoal. Não há volta a dar. A responsabilidade é essa mesma. Quanto à direcção que ocultou ou protegeu esses abusos, não sabendo ou sabendo – como o tesoureiro sabia – é simplesmente cúmplice do jogo. É preferível não confundir e é por isso que não alinho no debate viciado sobre esta matrioska de culpas. As coisas são como são e o tesoureiro, que ajudou a ocultar as contas abusivas, acabou por ser quem as denunciou. Tarde, mas sem ele nada se viria a saber e ainda hoje teríamos peditórios públicos para que algum do dinheiro fosse para as “fardas da rainha”.

Ora, esses são os factos mais incontroversos. No resto, o ministro explicou o que tinha a explicar e, se não lhe chegou nenhuma informação sobre esses abusos, não se lhe pode pedir que tivesse investigado o que não tinha sido indiciado. Ver o deputado do CDS a espanejar uns papelinhos com queixas de “irregularidades” que eram unicamente a compreensível obsessão do tesoureiro em sair do filme, é somente um momento de garotice do debate parlamentar, por parte de um partido que olha para o governo anterior da segurança social com pânico, pois chegou a propor que as entidades privadas tomassem conta da segurança social em modo de Estado mínimo.

O que fica por discutir, e isso terá consequências para o comportamento de responsáveis políticos, é esse frenesim da foto de família que leva a rainha de Espanha, a mulher do Presidente da República em funções, um deputado do PS que era ex-ministro e futuro ministro, um deputado do PSD que era ex-futuro-vice-presidente e tutti quanti a misturarem as suas políticas com uma associação de beneficência. Se tirarmos os deputados e dirigentes políticos de misericórdias, IPSS e clubes, só ficaremos melhor. E eles não passarão por vergonhas.

Artigo publicado em blogues.publico.pt a 19 de dezembro de 2017

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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