Amália, qual o teu fado?

porRafael Pereira

07 de dezembro 2024 - 21:13
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A aposta na Inteligência Artificial “Amália" é uma decisão política que nos obriga a refletir sobre a sua necessidade, precisamente por colocar em causa todo o potencial científico dos jovens investigadores, muitos deles já no estrangeiro.

Na Web Summit que ocorreu em outubro deste ano, o primeiro-ministro Luís Montenegro anunciou o desenvolvimento de um modelo computacional unicamente português que servisse para melhorar o acesso dos cidadãos à chamada “máquina pública” e para garantir uma tutoria aos estudantes dos vários ciclos de ensino. Deu-lhe o nome de Amália, uma das fadistas mais icónicas da nossa história, e garantiu ser o maior desenvolvimento tecnológico nacional. Eis porque tudo isto é relevante: porque não foi apenas uma das suas manobras de comunicação. Em pouco tempo foram surgindo notícias que davam conta dos cinco milhões e meio de euros que irão ser gastos do Plano de Recuperação e Resiliência para ativar o projeto que se prevê estar em funcionamento até 2026.

Assim fica clara uma das “prioridades” do governo, como chamou Margarida Balseiro Lopes, uma versão adaptada do Chat GPT acompanhada por um comité especializado e com o seu treino coordenado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia. Pergunto, em vez de investir milhões de euros num projeto de Inteligência Artificial (IA) que almeja melhorar o acesso aos serviços do Estado, porque não investir diretamente na digitalização e melhoria dos serviços públicos através da contratação de equipas multidisciplinares jovens e formadas por universidades portuguesas? Por que não aplicar o dinheiro do PRR em mais bolsas FCT de doutoramento e investigação, permitindo que jovens investigadores desenvolvam projetos nesta área? Ou ainda investir em programas que aproximem a ciência e a tecnologia das escolas e da comunidade, promovendo o pensamento crítico e o interesse por estas áreas desde cedo? São todas questões que ficam por responder.

O envolvimento da FCT no treino da IA portuguesa é uma questão crucial, sobretudo porque a instituição enfrentará um corte de cerca de sessenta e oito milhões de euros no próximo ano, o que torna este cenário ainda mais distópico. Foi eleito um governo que ao invés de apostar na ciência e na investigação, procura alimentar um modelo artificialmente inteligente que poderá substituir muito do trabalho científico e especializado que atualmente faz tanta falta nas entidades públicas. O pior é que pouco se tratam de suposições, porque é já reconhecido esse esforço por parte de outras plataformas semelhantes a esta, de onde o Chat GPT e o DALL-E são apenas exemplos.

De notar que a FCT não tem um orçamento tão baixo desde 2018 e que 2025 ir-se-á tornar o ano com maior quebra de dotação orçamental, o que não parece preocupar muito este governo. O mesmo governo que quando assumiu funções avisou para uma aparente suborçamentação da Fundação que poderia pôr em risco contratos e salários, caso não existisse um reforço de verbas. É um completo despeito pela ciência feita em Portugal e pelos seus investigadores, colocados numa extrema posição de precariedade que se agrava cada vez mais. Portugal tornou-se o país onde se estima que os investigadoresperdem entre 19% a 28% do seu rendimento relativamente ao aumento do custo de vida dependendo do tipo de bolsa, onde a remuneração base de uma bolsa de iniciação científica não acompanha o salário mínimo nacional, e onde se vão perdendo vários apoios para o desenvolvimento da atividade científica.

Para além disso, encontramo-nos no momento em que a União Europeia concentra esforços para a construção de mecanismos regulatórios sobre a Inteligência Artificial e o seu uso, combatendo a formação de mais e mais modelos de inteligentes apesar do estrondoso impacto ambiental que comporta a sua manutenção. Em vez de apostar neste tipo de modelos, Portugal poderia liderar a investigação em IA de baixo consumo energético, desenvolvendo algoritmos que respeitem os compromissos climáticos do Green Deal e tratados congéneres. Pugnando igualmente pela construção de infraestruturas informáticas que se comprometam com a sustentabilidade, como o centro de dados da Microsoft Azure em Washington que estima atingir neutralidade carbónica e a reposição positiva do uso excessivo de água até 2030.

Não pretendo aqui fazer qualquer juízo de valor sobre a utilidade futura deste modelo computacional, nem de todos os outros, na medida em que são já parte fundamental do trabalho de muitos profissionais e de muitos estudantes. Não obstante, é necessário pensar primeiro no controlo e regulamentação desta tecnologia, bem como continuar a apostar nos serviços, na ciência e no conhecimento produzido por pessoas. O governo português tem e terá uma escolha: continuar a encurtar os recursos das áreas que garantem a soberania científica e da investigação ou investir no futuro das pessoas que todos os dias produzem ciência.

A aposta na IA “Amália" é uma decisão política que nos obriga a refletir sobre a sua necessidade, precisamente por colocar em causa todo o potencial científico dos jovens investigadores, muitos deles já no estrangeiro. Sabemos que o investimento em políticas que desconsideram os jovens tendem a comprometer o futuro do país, pelo que é tempo de exigir a concretização medidas que valorizem a ciência produzida por pessoas - e por pessoas jovens - e a melhoria das condições de vida dos nossos investigadores, de forma ética e sustentável.

Rafael Pereira
Sobre o/a autor(a)

Rafael Pereira

Estudante de sociologia deslocado para Coimbra e ativista interseccional
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