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Amadorismo, desconhecimento e memória

O pretenso amadorismo de Zeinal Bava encontrou semelhanças e paradoxos com o comportamento de Passos Coelho, "compulsivamente" impelido a pagar a sua dívida já prescrita à Segurança Social.

O amadorismo não se mede às prestações mas há limites que não comportam qualquer valor residual. A pergunta de Mariana Mortágua, deputada do Bloco de Esquerda, na audição de Zeinal Bava no contexto da Comissão Parlamentar de Inquérito ao BES, acertou directa e redonda nos passos em volta do nada e do ainda menos que o ex-CEO teimava em repetir como metodologia de fuga e elogio da amnésia: "É um bocadinho amadorismo para quem ganhou tantos prémios de CEO do ano, CEO da Europa e arredores, não é?", perguntou retoricamente a deputada. Na longa audição, Zeinal Bava nunca conseguiu responder ao mínimo que lhe era exigível, nomeadamente sobre o investimento da PT (897 milhões em Fevereiro e Abril de 2014) na RioForte. Esgrimindo plácida e sucessivamente "não tenho de memória", "tenho dificuldade em dar-lhe esses números", "não tenho responsabilidade", "não sabia, não tinha que saber", as frases mais proferidas por Bava ecoavam com desplante. Uma outra também: "era o que estava no Tableau de Board", chutando todas as perguntas para canto, agora em várias línguas. Mariana Mortágua teve o condão de destruir o patético muro de Bava com uma frase simples. Em última análise, salvou-o de ser encarado como inimputável, coisa aborrecida para quem comandou destinos de milhões de euros e de milhares de pessoas. Nem inimputável, nem irresponsável, nem amnésico. Nem tão-pouco amador, como trespassava a fina ironia da deputada. Tantos prémios depois, Zeinal Bava assegurava com distinção o prémio da grande lata.

A capacidade para omitir sem que se perceba a dimensão da mentira só está ao alcance dos que não têm culpa efectiva no cartório. Quando assim acontece, a omissão passa bem pelo sentimento de protecção perante a agressividade dos outros e acaba por poder ser encarada como um pequeno pacto de coragem na defesa da verdade e dos seus. A fuga para a memória (neste caso, a falta dela) até podia ser altamente saturada. Em certos momentos essa saturação pode prejudicar o acesso à verdade absoluta e, como defendia o psicanalista e pensador britânico Wilfred Bion, o pensamento, a memória e o desejo podem ser substituídos por algo que o ensaísta defendia como um "acto de fé", enquanto estado mental científico. A sensibilidade que decorre do "estado de intuição" que deve estar sempre presente na análise ganha aqui novos contornos. A falta de memória de Zeinal Bava contraria até a máxima de que "o essencial é invisível aos olhos" como dizia o pequeno Príncipe de Saint-Exupéry. Neste caso, e já que Bava escudou o seu desconhecimento com o tempo que passava no Brasil, abrasileiremos: "está na cara".

O pretenso amadorismo de Zeinal Bava encontrou semelhanças e paradoxos com o comportamento de Passos Coelho, "compulsivamente" impelido a pagar a sua dívida já prescrita à Segurança Social, respeitante aos período de Outubro de 1999 a Setembro de 2004, depois de ter sido confrontado pelo jornal "Público" sobre a existência da mesma. O agora primeiro-ministro de Portugal defende-se afirmando que desconhecia, na altura, a obrigatoriedade dos pagamentos. Acrescenta que já tinha sido informado "oficiosamente" em 2012 sobre dívida em causa (mas não revela a fonte, dizendo que nunca foi notificado oficialmente). E termina dizendo que pretendia pagar o que devia (embora a dívida já tivesse prescrito) depois de sair do Governo. Tendo em conta que se candidatará confiante a uma nova legislatura, a Segurança Social poderia contar com o acerto de contas lá para 2019. Isto, obviamente, caso Passos Coelho não continuasse a sua carreira política pós-Governo, assumindo um outro qualquer papel relevante à sua escolha. Independentemente de ter declarado todos os seus rendimentos ou não, certo é que os valores mínimos de contribuição não foram entregues. E quando Pedro Mota Soares, ministro da Segurança Social, salta para a praça pública defendendo que Passos Coelho foi uma "vítima de erros da Administração", temos a certeza de que este Governo não cumpre os mínimos exigíveis para quem quer ser levado a sério. Já não me refiro a comportamentos exemplares. O psicanalista Wilfred Bion foi caracterizado como alguém que, para além de desejar que os seus pacientes melhorassem, aspirava sobretudo a que procurassem a verdade. Zeinal Bava e Passos Coelho deram-nos, nestes dias, fundadas razões para acreditar que já nem o divã os resolve.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” em 3 de março de 2015

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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