Uma das votações mais estranhas no Orçamento, talvez não surpreendente, foi sobre o regime fiscal dos residentes não habituais. O termo em si é cheio de ironia, pois são estrangeiros que vivem em Portugal, portanto residentes habituais. A sua condição é que vieram para o nosso país para beneficiar de um regime fiscal de favor durante dez anos. Segundo o Tribunal de Contas, em 2021 eram 57.887 pessoas neste regime, em 2022 o número subiu para 74.258, enquanto a despesa fiscal cresceu de €959 para €1360 milhões, cerca de 40% mais. Em 2023, de que ainda não se conhece o detalhe do registo, continuou a subir, como ao longo de todos os últimos sete anos. Portanto, ao ritmo anterior, a conta poderá já ultrapassar os €1500 milhões anuais.
Agora é que vai ser
A 2 de outubro, o primeiro-ministro anunciou em entrevista o fim do regime, se bem que continuasse garantido para quem já se tivesse nele inscrito. Devem ser gravadas em mármore as razões que enunciou para ter mudado de opinião: “Já não faz sentido continuar a manter essa medida para o futuro, é não só prolongar uma medida de injustiça fiscal que não se justifica, mas é uma forma também enviesada de continuar a inflacionar o mercado de habitação que não deve ser inflacionado, pelo contrário, já atingiu preços absolutamente insustentáveis.” Ouvido isto, pode-se perguntar qual terá sido a razão para que tivesse feito “sentido” uma medida que tinha o duplo impacto de ser promotora da injustiça fiscal “que não se justifica” e de ter inflacionado o preço da habitação, “que já atingiu preços absolutamente insustentáveis”. É um mistério por resolver, pois suponho que não ouviremos mais uma palavra sobre o assunto. O facto é que foi anunciado o fim do regime, que vem, na sua forma atual, de 2009, tempo de outra maioria absoluta do PS.
Fim do regime, vírgula. A maioria toma sempre decisões absolutas e, apesar da tal injustiça fiscal tão lancinante e da inflação imobiliária, decidiu estender o prazo de inscrição no sistema pelo ano de 2024, para pessoas que serão beneficiadas até 2034.
Rutura diplomática
Injustiça e inflação imobiliária, é o preço que pagamos. Ora, este benefício fiscal também tem um custo para outros países, perdem receita fiscal. E, portanto, não gostam da marosca. Por isso, a ministra da Finanças da Suécia, Magdalena Andersson, veio há dois anos a Portugal para resolver o assunto. Vinha zangada, o Governo português tinha prometido aplicar o imposto aos suecos “não habituais”, tinha assinado em 2002 um acordo prevendo o imposto (Portugal cobrava então 0%), assinou um segundo acordo em 2019 para uma tributação normal, mas não cumpriu nem o primeiro nem o segundo. E ela desembarcou para dizer numa entrevista que “a nossa paciência terminou”.
Injustiça e inflação imobiliária, é o preço que pagamos. Ora, este benefício fiscal também tem um custo para outros países, perdem receita fiscal. E, portanto, não gostam da marosca
A explicação é ilustrativa: “É uma injustiça fiscal que pessoas que auferem milhões de euros de rendimento, ao mudarem-se para Portugal, não paguem imposto (IRS), enquanto pessoas (com rendimentos) comuns na Suécia — e em Portugal — pagam imposto”, e continuou, “uma taxa de 10% não é solução. Alguns dos cidadãos suecos têm rendimentos de milhões de euros e não pagam qualquer imposto. A taxa de 10% é demasiado baixa, é muito menos do que o que paga um pensionista comum em Portugal”. Ficou tudo dito, também ela não aceitava a injustiça fiscal. Segundo a ministra, “a convenção de 2002 prevê uma taxa de imposto para evitar a dupla tributação, mas o resultado, depois de Portugal ter alterado o seu regime fiscal (em 2009), é uma não tributação. E isso é inaceitável. De uma perspetiva sueca, é muito interessante (observar) a forma como os cidadãos comuns em Portugal aceitam isto. É fascinante. Se um paciente sueco e um paciente português estiverem lado a lado num hospital (português), o português pagou impostos pelos dois, porque os suecos têm todos os direitos — cuidados de saúde, transportes públicos —, mas não pagam impostos”. Há nisto um lamento, até alguma condescendência, mas afinal é mesmo injustiça fiscal, a ministra sueca e o nosso primeiro-ministro estão de acordo. A consequência foi que o Parlamento sueco, não tendo obtido resposta, revogou o acordo com Portugal meses depois dessa visita, ao passo que a maioria absoluta decidiu esta semana abrir a porta para que mais “não habituais” venham comprar casa e pagar 10% de IRS — o que diz que é injusto e inflaciona o preço das casas.
Um novo PRR
Em dez anos, este benefício aplicado a ainda mais pessoas ultrapassará os 15, se não os €20 mil milhões. O PRR traz €13,9 mil milhões. O Governo português aceita portanto perder em benefícios fiscais mais do que o PRR e, se cobrasse o imposto segundo as regras que se aplicam ao contribuinte português teria o dobro da possibilidade de investir. Bem sei que o cínico dirá: se lhes cobram imposto, os coitados dos “não habituais” fogem e não pagam nada. Só que é absurdo, são pessoas que têm casa aqui e pagarão sempre menos do que na maior parte dos países de onde vêm, o IRS em Portugal é menor do que noutros países. Não sairão e não vejo como possam contestar a obrigação de pagar o imposto que se aplica a toda a gente. Portanto, o Estado está mesmo a perder um PRR — e a criar injustiça fiscal “que não se justifica” e a inflacionar a habitação, “que já atingiu preços absolutamente insustentáveis”, Costa dixit. Como isso é inadmissível, deve continuar, concluiu o PS esta semana.
Artigo publicado no jornal “Expresso” a 1 de dezembro de 2023
