Algumas ideias sobre um novo PRR de €15 mil milhões

porFrancisco Louçã

10 de dezembro 2023 - 20:32
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A maioria PS decidiu estender o prazo de inscrição no regime fiscal dos residentes não habituais pelo ano de 2024, para pessoas que serão beneficiadas até 2034.

Uma das votações mais estranhas no Orçamento, talvez não surpreendente, foi sobre o regime fiscal dos residentes não habituais. O termo em si é cheio de ironia, pois são estrangeiros que vivem em Portugal, portanto residentes habituais. A sua condição é que vieram para o nosso país para beneficiar de um regime fiscal de favor durante dez anos. Segundo o Tribunal de Contas, em 2021 eram 57.887 pessoas neste regime, em 2022 o número subiu para 74.258, enquanto a despesa fiscal cresceu de €959 para €1360 milhões, cerca de 40% mais. Em 2023, de que ainda não se conhece o detalhe do registo, continuou a subir, como ao longo de todos os últimos sete anos. Portanto, ao ritmo anterior, a conta poderá já ultrapassar os €1500 milhões anuais.

Agora é que vai ser

A 2 de outubro, o primeiro-ministro anunciou em entrevista o fim do regime, se bem que continuasse garantido para quem já se tivesse nele inscrito. Devem ser gravadas em mármore as razões que enunciou para ter mudado de opinião: “Já não faz sentido continuar a manter essa medida para o futuro, é não só prolongar uma medida de injustiça fiscal que não se justifica, mas é uma forma também enviesada de continuar a inflacionar o mercado de habitação que não deve ser inflacionado, pelo contrário, já atingiu preços absolutamente insustentáveis.” Ouvido isto, pode-se perguntar qual terá sido a razão para que tivesse feito “sentido” uma medida que tinha o duplo impacto de ser promotora da injustiça fiscal “que não se justifica” e de ter inflacionado o preço da habitação, “que já atingiu preços absolutamente insustentáveis”. É um mistério por resolver, pois suponho que não ouviremos mais uma palavra sobre o assunto. O facto é que foi anunciado o fim do regime, que vem, na sua forma atual, de 2009, tempo de outra maioria absoluta do PS.

Fim do regime, vírgula. A maioria toma sempre decisões absolutas e, apesar da tal injustiça fiscal tão lancinante e da inflação imobiliária, decidiu estender o prazo de inscrição no sistema pelo ano de 2024, para pessoas que serão beneficiadas até 2034.

Rutura diplomática

Injustiça e inflação imobiliária, é o preço que pagamos. Ora, este benefício fiscal também tem um custo para outros países, perdem receita fiscal. E, portanto, não gostam da marosca. Por isso, a ministra da Finanças da Suécia, Magdalena Andersson, veio há dois anos a Portugal para resolver o assunto. Vinha zangada, o Governo português tinha prometido aplicar o imposto aos suecos “não habituais”, tinha assinado em 2002 um acordo prevendo o imposto (Portugal cobrava então 0%), assinou um segundo acordo em 2019 para uma tributação normal, mas não cumpriu nem o primeiro nem o segundo. E ela desembarcou para dizer numa entrevista que “a nossa paciência terminou”.

Injustiça e inflação imobiliária, é o preço que pagamos. Ora, este benefício fiscal também tem um custo para outros países, perdem receita fiscal. E, portanto, não gostam da marosca

A explicação é ilustrativa: “É uma injustiça fiscal que pessoas que auferem milhões de euros de rendimento, ao mudarem-se para Portugal, não paguem imposto (IRS), enquanto pessoas (com rendimentos) comuns na Suécia — e em Portugal — pagam imposto”, e continuou, “uma taxa de 10% não é solução. Alguns dos cidadãos suecos têm rendimentos de milhões de euros e não pagam qualquer imposto. A taxa de 10% é demasiado baixa, é muito menos do que o que paga um pensionista comum em Portugal”. Ficou tudo dito, também ela não aceitava a injustiça fiscal. Segundo a ministra, “a convenção de 2002 prevê uma taxa de imposto para evitar a dupla tributação, mas o resultado, depois de Portugal ter alterado o seu regime fiscal (em 2009), é uma não tributação. E isso é inaceitável. De uma perspetiva sueca, é muito interessante (observar) a forma como os cidadãos comuns em Portugal aceitam isto. É fascinante. Se um paciente sueco e um paciente português estiverem lado a lado num hospital (português), o português pagou impostos pelos dois, porque os suecos têm todos os direitos — cuidados de saúde, transportes públicos —, mas não pagam impostos”. Há nisto um lamento, até alguma condescendência, mas afinal é mesmo injustiça fiscal, a ministra sueca e o nosso primeiro-ministro estão de acordo. A consequência foi que o Parlamento sueco, não tendo obtido resposta, revogou o acordo com Portugal meses depois dessa visita, ao passo que a maioria absoluta decidiu esta semana abrir a porta para que mais “não habituais” venham comprar casa e pagar 10% de IRS — o que diz que é injusto e inflaciona o preço das casas.

Um novo PRR

Em dez anos, este benefício aplicado a ainda mais pessoas ultrapassará os 15, se não os €20 mil milhões. O PRR traz €13,9 mil milhões. O Governo português aceita portanto perder em benefícios fiscais mais do que o PRR e, se cobrasse o imposto segundo as regras que se aplicam ao contribuinte português teria o dobro da possibilidade de investir. Bem sei que o cínico dirá: se lhes cobram imposto, os coitados dos “não habituais” fogem e não pagam nada. Só que é absurdo, são pessoas que têm casa aqui e pagarão sempre menos do que na maior parte dos países de onde vêm, o IRS em Portugal é menor do que noutros países. Não sairão e não vejo como possam contestar a obrigação de pagar o imposto que se aplica a toda a gente. Portanto, o Estado está mesmo a perder um PRR — e a criar injustiça fiscal “que não se justifica” e a inflacionar a habitação, “que já atingiu preços absolutamente insustentáveis”, Costa dixit. Como isso é inadmissível, deve continuar, concluiu o PS esta semana.

Artigo publicado no jornal “Expresso” a 1 de dezembro de 2023

Francisco Louçã
Sobre o/a autor(a)

Francisco Louçã

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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