Alguma dignidade

porTiago Ivo Cruz

09 de novembro 2010 - 11:09
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O papel do Ministério da Cultura está hoje reduzido a um poço de intriga palaciana e à projecção casuística do gosto pessoal de cada ministro.

Foi com alguma surpresa que muitas pessoas viram Gabriela Canavilhas nomeada para Ministra da Cultura. Não se conhece um único artigo de opinião, discurso sobre política cultural ou posição pública de renome que a habilitassem para o cargo. Chegou por isso ao Ministério com um grande consenso na comunicação social: é pianista, é artista, vai com certeza entender e governar aquela malta.

Tomou posse com um discurso muito em voga de moralização do artista. O artista em Portugal está mal habituado, é um subsídio-depente que produz coisas que não servem para nada e, merece ser posto na ordem.

Por entre divagações pouco informadas sobre a Lusofonia e a Língua Portuguesa e Camões e Pessoa, a trave mestra do pensamento governativo de Gabriela Canavilhas resume-se à criminalização do artista. É pouco e não serve para nada. 

E no entanto toda a carreira de Gabriela Canavilhas é subsidiada pelos nossos impostos. Leiam o currículo público. Educou-se num conservatório de música, de ensino exigente e caro para o Estado e para nós, e numa universidade também pública quando ainda não se pagavam propinas. Foi professora num conservatório público, paga por nós, produziu uns festivais de música nos Açores com dinheiro público, saltou para a direcção da Orquestra Metropolitana de Lisboa que existe graças a financiamento público (já basta de fingir que é uma instituição privada), ocupou o lugar de Directora Regional dos Açores para a Cultura para ganhar e gastar dinheiro público e, assim que conseguiu veio para a capital para um lugar público.

O papel do Ministério da Cultura tem sido de tal maneira pouco pensado que está hoje reduzido a um poço de intriga palaciana e à projecção casuística do gosto pessoal de cada ministro. Neste contexto é perigoso ter alguém sem pensamento formado sobre política cultural a ocupar o Ministério. Fazem o que lhes der na bola e, podem fazê-lo sem grande preocupação de serem confrontados por quem quer que seja. Gabriela Canavilhas deu já provas que não entende a necessidade de se auto-censurar, não ir além do que o lugar exige. Gosto não é uma coisa relativa, pelo contrário. É uma ferramenta cultural essencial que define o que é bom, o que é mau e o que é verdade. Opera-se também a nível governativo mas não é exigível ao lugar ministerial que se pronuncie sobre a validade do projecto artístico que concorre aos concursos públicos de financiamento da Direcção Geral das Artes.

É exigível alguma verdade intelectual a um(a) Ministro(a) da Cultura. Descredibilizar os criadores que fazem serviço público sob a tutela do Ministério como ferramenta política para se legitimar perante a opinião pública é falta de sentido de Estado.

Gabriela Canavilhas reuniu ontem com os agentes culturais financiados pelos concursos quadrienais. Estruturas que perfazem a coluna vertebral do tecido criativo nacional. Numa lógica de Robin dos Bosques, a ministra decidiu cortar 23% do orçamento já contratualizado para garantir o apoio às estruturas financiadas pelos concurso anuais e bienais, em geral mais pequenas e frágeis. É bom percebermos que estamos a falar sensivelmente de um corte de 5 milhões de euros. Duvido que chegue para mais de um quilómetro de auto-estrada. Mas este quilómetro de auto-estrada garante emprego a 12 mil trabalhadores das artes. As estruturas quadrienais não são os papões do orçamento que a Ministra quer fazer crer, e não merecem a chantagem política que lhes está a ser imposta.

Tiago Ivo Cruz
Sobre o/a autor(a)

Tiago Ivo Cruz

Doutorando na FLUL, Investigador do Centro de Estudos de Teatro/Museu Nacional do Teatro e da Dança /ARTHE, bolseiro da FCT
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