Ainda é possível sair da toca do coelho da Alice?

porFrancisco Louçã

30 de julho 2022 - 16:28
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Os sistemas a que chamamos democracias são construções paradoxais. Durante muito tempo, foram formas de coordenação da dominação, excluindo as mulheres, os pobres e os escravos.

Em 1735, Sir Robert Walpole, conde de Oxford, mudou-se para o número 10 da Downing Street. Ostentando então a função de Lorde do Tesouro, é considerado o primeiro primeiro-ministro efetivo do Reino Unido e é assim que está registada a sua escolha da morada oficial em Londres. Walpole foi um negociante bem-sucedido: foi um dos grandes investidores na Companhia dos Mares do Sul, o empreendimento fantasioso que prometia fortunas com a exploração do tráfico negreiro e outras minas de ouro ao sul do Equador, o que fez disparar os preços das suas ações. O futuro Lorde do Tesouro comprou barato e vendeu caro e a tempo, o que não sucedeu a tantos contemporâneos, como Isaac Newton, que, perdendo o que hoje seriam 20 milhões de euros, ao que consta, terá concluído que é mais fácil descobrir os segredos das estrelas do que compreender a loucura dos seres humanos. Pelo contrário, Walpole enriqueceu com a fraude.

Duzentos e cinquenta anos mais tarde, em 1985, os diversos ocupantes do cargo que então viviam, cinco mais a primeira-ministra Margaret Thatcher, reuniram-se no edifício para comemorar a efeméride. E é aqui que esta história começa a ser interessante. Um deles, Callaghan, perguntou aos seus colegas o que teriam em comum, e MacMillan, um conservador que exercera funções duas décadas atrás, terá sugerido “a falta de princípios”. Não se regista a resposta das pessoas presentes na sala, este será um caso em que perguntar pode ofender, se bem que seja a verdade inconveniente. A anedota foi contada por Tariq Ali, um crítico do establishment britânico, lembrando que as mentiras que levaram à demissão de Boris Johnson têm ilustres precedentes. Agora que Johnson saiu, pouco tempo depois de uma esmagadora vitória eleitoral com maioria absoluta, talvez devamos perguntar qual é o futuro de uma democracia governada ao longo dos tempos por tal falta de princípios ou se se pode sair da toca do coelho depois de nela ter mergulhado.

Defeito e feitio

A resposta mais óbvia é que essa falta de princípios, com o que supõe de adaptação ou de oportunismo das políticas, não é um mero defeito. É uma banalidade, se não, porventura, o modo deslavado de descrever as constelações dos interesses na sombra e na luz de Governos poderosos, em que muitos desempenhos primo-ministeriais evocam a sagacidade daquele antecessor, Sir Walpole. Assim, o filho de Thatcher teria aproveitado os fulgores do poder para ser intermediário em vendas de armas aos sauditas; o Governo de Blair culminou a sua carreira com a invasão do Iraque; catadupas de governantes aparecem nos Panama Papers e em cada uma das revelações posteriores. Noutras paragens, o marido da rainha dos Países Baixos perdeu a sua patente militar ao ser provado o suborno que recebeu da Lockheed para armas; o anterior rei de Espanha saiu do seu país para evitar um escândalo fiscal, e Trump continua a esquivar-se à investigação sobre a sua trafulhice nos impostos.

A falta de princípios, com o que supõe de adaptação ou de oportunismo das políticas, não é um mero defeito. É uma banalidade, se não, porventura, o modo deslavado de descrever as constelações dos interesses na sombra e na luz de Governos poderosos

Falta de princípios? Essa designação é um modo delicado de moralizar e relativizar a falha perante a lei. Trata-se, em todos estes casos, de decisões consistentes segundo o princípio do exercício do poder. Esse não falhou em nenhum destes casos. Se se quiser, a revelação recente das conversas entre uma ministra do Governo Rajoy, um responsável policial e o diretor de uma cadeia televisiva, em que combinam promover uma conspiração contra o recentemente formado Podemos, ou o discurso de Bolsonaro aos embaixadores acreditados em Brasília para justificar um golpe militar contra as próximas eleições são evidências do modo de governar dentro da toca do coelho.

Depois das dinastias

Os sistemas a que chamamos democracias são construções paradoxais. Durante muito tempo foram formas de coordenação da dominação, excluindo as mulheres, os pobres e os escravos. Se foram forçados a uma universalização de direitos de participação, foi unicamente pela pressão social na época moderna e, desde então, reconstituíram-se como um modo de hegemonia com representação alargada, mas também continuaram a ser o espaço de disputa de direitos sociais pelas classes dominadas. Neste terreiro de luta, a representação tem mudado: democracias foram aniquiladas por populismos (os fascismos europeus) e tuteladas por dinastias (os Kennedys e os Bushs nos EUA, os Papandreous e os Karamanlis na Grécia, tantos na Ásia e América Latina), em ambos os casos presumindo a estabilidade do poder, e transformaram-se na contemporaneidade com a fragmentação de poderes voláteis, de que a queda de Johnson, a crise do Governo Draghi, a derrota de Macron, o esvaimento de Scholz, a viragem à direita do Governo Costa são exemplos. Em todos os casos, é sempre a tal “falta de princípios” de Downing Street. A réstea de esperança que foi prometida, o “yes, we can” que arrebatou os eleitores nos EUA em 2008, não impediu a vitória seguinte de Trump.

É esta fragilidade das regras da disputa democrática, entre uma hegemonia gananciosamente explorada pelos seus mandantes e as necessidades sociais, em que até falha a civilidade do contrato de trabalho ou da garantia do cuidado de saúde, que alimenta a incerteza. Assim, se o bem comum é substituído pela vantagem pessoal dos mandarins ou pela arte da mentira, onde soçobra a lei sobra a força. Não se surpreenda se a resposta que vem da toca do coelho seja o tambor da guerra infinita. Hoje, só a guerra distrai e confirma a mentira.

Artigo publicado no jornal “Expresso” a 22 de julho de 2022

Francisco Louçã
Sobre o/a autor(a)

Francisco Louçã

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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