Acidente no Elevador da Glória: uma “atrapalhação”?

porJoão Fraga de Oliveira

07 de setembro 2025 - 11:31
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Se tal se confirmar (as causas do acidente estarem, de algum modo, relacionadas com a “externalização” / subcontratação da manutenção), isso não tem nada de surpreendente, para não se dizer que, em geral, é (quase) regra.

Em 03/09/2025, em Lisboa, no Elevador da Glória, verificou-se um acidente do qual resultaram 38 vítimas (16 mortos e 22 feridos mais ou menos graves).

O acidente consistiu no descarrilamento e colapso de um dos veículos (“eléctrico”) utilizado naquele sistema de transporte público explorado e gerido pela CARRIS – Companhia dos Caminhos de Ferro de Lisboa, empresa detida em 100% do capital e com gestão tutelada pela Câmara Municipal de Lisboa.

Um acidente ferroviário e também um acidente de trabalho, visto que uma das vítimas mortais foi o guarda-freio do “eléctrico” descarrilado, para além de que pelo menos mais quatro outras vítimas então passageiros no “elétrico” eram trabalhadores em várias empresas ou outras organizações em deslocação do local de trabalho para a sua casa ou vice-versa (acidente de trabalho in itinere).

Justamente por essa razão, estando em curso a averiguação oficial das causas do acidente, entre as entidades competentes envolvidas está incluída a Autoridade para as Condições de Trabalho.

A hipótese de falta de manutenção adequada do sistema de transporte utilizado é aventada publicamente pela comunicação social e por especialistas neste domínio técnico e organizacional como podendo estar associada a essas causas.

O presidente do Conselho de Administração (CA) da Carris assumiu no início da noite do dia do acidente, perante a comunicação social, que “todo o protocolo de manutenções (quadrianuais, anuais, mensais e semanais) daquele sistema de transportes foi escrupulosamente cumprido”.

Há que, em princípio, conferir toda a credibilidade à noção das responsabilidade implicadas (muito embora um dos riscos das relações de subcontratação seja o de diluição ou fragmentação dessa noção) com certeza garantida em tais declarações de quem, perante acidente tão grave, assume tal cargo.

E, em coerência, há também que presumir que o presidente do CA da Carris, apesar de não ter também na altura afirmado, está absolutamente seguro, não “apenas” dos registos da protocolar frequência subcontratada (no caderno de encargos do concurso público) das manutenções a deverem ser realizadas mas, também (e sobretudo), das suas reais, efectivas, abrangência, profundidade, qualidade e eventualmente necessária adaptação rigorosa do sistema técnico e da organização e condições do trabalho que garante o seu funcionamento em segurança (no / do equipamento e do / no trabalho) com uma utilização cada vez mais intensificada (sobre-intensificada?) em virtude do crescimento do afluxo de turistas, sobretudo em períodos do ano mais propícios ao turismo.

Entretanto, sindicatos do sector e mesmo representantes de várias entidades de algum modo relacionadas com a actividade de transportes públicos, designadamente o ferroviário, ouvidos ou publicados pela comunicação social, associam essa causa ao facto de, há cerca de 14 anos, a manutenção daquele sistema de transporte ter passado a deixar de ser realizada directamente pela CARRIS (por trabalhadores do seu quadro de pessoal) e passar a ser executado por uma empresa subcontratada através de concursos públicos periodicamente abertos. A fim de, assim, “externalizando” tal serviço, ser obtida uma redução de custos para a empresa contratante.

Se tal se confirmar (as causas do acidente estarem, de algum modo, relacionadas com a “externalização” / subcontratação da manutenção), isso não tem nada de surpreendente, para não se dizer que, em geral, é (quase) regra.

Do ponto de vista mais laboral (na acepção estrita do termo), neste condicionalismo contratual e de interesses empresariais “cruzados”, tais situações aumentam o risco de degradação das condições de trabalho e mesmo de desregulação social, na medida em que salários e condições de trabalho legais e dignas podem, directa ou indirectamente, por acção ou omissão, serem entendidas como algo a descartar ou a merecer pouca atenção e cuidado: o recurso por regra a vínculos precários, a redução do quadro de pessoal à custa da (sobre)intensificação (ritmo e duração ou organização dos tempos de trabalho), o menosprezo da formação profissional como garantia e melhoria da qualificação dos trabalhadores, a manutenção de baixos salários ou, até, a desregulação, o incumprimento da lei, neste caso, por exemplo, o trabalho não declarado, a fuga (por não declaração ou subdeclaração de remunerações) ao pagamento de contribuições para a Segurança Social – SS - e, mais grave, da não garantia das condições de segurança e saúde do trabalho.

Em termos de gestão empresarial, focando mais a situação de que este texto emerge, o acidente no Elevador da Glória, a produção assente na subcontratação coloca problemas de direcção, organização, articulação e coordenação de nível profissional, departamental ou organizacional a que nem sempre é possível dar a devida atenção e solução mais adequada sob vários pontos de vista, nomeadamente, os de condições de qualidade, prontidão e segurança na / da produção (produto ou serviço) e de condições e segurança do / no trabalho.

De facto, desde logo, suscita o risco de desperdício da experiência profissional individual e colectiva (cooperativa) sucessivamente acumulada pelos trabalhadores (individual e colectivamente considerados) do quadro de pessoal da “empresa mãe” (contratante), bem como, com a substituição periódica em condição dos sucessivos concursos públicos, dos trabalhadores do quadro de pessoal das empresas subcontratadas. Experiência profissional que, muitas vezes, tendo em conta as características técnicas e organizacionais do equipamento e do seu funcionamento, não é possível reconstruir na curta (3 ou mesmo 4 anos) duração dos (sub)contratos decorrentes dos concursos públicos ou, mesmo, suprir inteiramente por formação profissional.

Depois, num contexto de grande concorrência empresarial como o actual, a relação entre as empresas subcontratadas e as organizações contratantes utilizadoras finais do trabalho é uma relação potencialmente “leonina”, na medida em que estas últimas, grandes empresas ou a administração pública, tendo por referência essencial (se não, na prática, exclusiva) nos cadernos de encargos o preço mais baixo e o prazo de entrega, alheiam-se, se é que não (se) aproveitam, do facto das empresas subcontratadas, entrando entre si em feroz concorrência, tudo fazerem para “ganharem o contrato”, podendo resvalar, como de facto muitas vezes resvalam, para vias ilegais ou de concorrência desleal.

Se é que não é a subversão da qualidade do produto ou serviço (inclusive o que possa ter carácter público ou essencial, como é o caso, por exemplo, da saúde, transportes ou comunicações) em vista, pode ser o estrangulamento de preços para além dos limites mínimos dos custos reais (o que depois é “compensado” com salários baixos ou sobre-intensificação do trabalho ou mesmo fuga de pagamento de contribuições para a SS) ou a exiguidade dos prazos face às exigências de frequência, quantidade, qualidade e mesmo, mais preocupante, de segurança do produto a fornecer ou o serviço a prestar e do / no respectivo trabalho dos trabalhadores que o realizam.

Estes riscos aumentam quando essas empresas subcontratadas, para cumprirem os respectivos (sub)contratos firmados com a organização contratante, recorrem por sua vez elas próprias  à (sub) subcontratação (em cadeia) de outras pequenas ou micro empresas de prestação de serviços e de empresas de trabalho temporário.

Se numa situação de subcontratação linear, já se verifica maior complexificação e dificuldade na precisão de responsabilidades nas relações de produção e de trabalho (na medida em que nestas situações, como escreve uma eminente autora de Direito do Trabalho, “quem contrata não emprega e quem emprega não contrata”), isso é ainda mais agravado numa situação de subcontratação em cadeia.

nas relações comerciais de subcontratação (...), há a possibilidade de, entre os interesses da entidade ou empresa contratante (...) e os interesses da empresa subcontratada (...), a segurança, qualidade, prontidão e suficiência do produto ou serviço (...) fornecido a terceiros (...), bem como a segurança e saúde dos trabalhadores (...) que o realizam, poder ser considerada… uma “atrapalhação”

Enfim, nas relações comerciais de subcontratação (e não apenas nos transportes públicos, mesmo noutros domínios de ainda maior responsabilidade / risco social – por exemplo, no da Saúde), há a possibilidade de, entre os interesses da entidade ou empresa contratante (interesse essencial é o preço mais baixo até como factor preponderante de adjudicação nos concursos públicos, mas também prazos de execução mais curtos, maior quantidade de produto ou serviço fornecido, etc) e os interesses da empresa subcontratada (essencial – naturalmente, como empresa privada -, o maior lucro possível na execução do subcontrato), a segurança, qualidade, prontidão e suficiência do produto ou serviço (neste caso, transporte público ferroviário) fornecido a terceiros (clientes ou utentes), bem como a segurança e saúde dos trabalhadores (em geral, as condições de trabalho, se não mesmo os direitos legais) que o realizam, poder ser considerada… uma “atrapalhação”.

nada há menos acidental do que um acidente de trabalho

Estando a realizar-se os respectivos inquéritos por entidades cuja competência garante que terão em conta todos os factores (técnicos, organizacionais, gestionários, económicos, sociais, etc), inclusive os aventados no que precede, obviamente que, até agora, nada há – como não deve haver, muito menos por quem “está de fora” - a garantir como sustentado quanto às causas do acidente.

No entanto, há muito que está garantido como sustentado um pressuposto que é imprescindível considerar neste domínio: nada há menos acidental do que um acidente de trabalho.

Ora, o trabalho é central não só na vida de cada um mas em geral na sociedade, o trabalho “está em todo o lado”, o trabalho, para o bem e para o mal, “tem um longo braço”.

Daí que quem diz um acidente de trabalho, diz, por exemplo, um acidente ferroviário.

Uma versão mais reduzida deste texto foi publicada no Público online de 4 de Setembro de 2025

João Fraga de Oliveira
Sobre o/a autor(a)

João Fraga de Oliveira

Inspector do trabalho aposentado. Escreve com a grafia anterior ao “Acordo Ortográfico”
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