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Abril na Saúde é SNS

São 42 anos de uma das maiores conquistas de abril. Ela tem sobrevivido graças à força dos seus defensores, que olham para o SNS como um cravo de abril incapaz de murchar. Neste mês, em que lembramos a resistência, levemos a peito a ideia de que o SNS é a liberdade na saúde.

Antes do 25 de abril, Portugal tinha dos piores indicadores de saúde da Europa. A esperança de vida rondava os 60 anos, a mortalidade infantil era superior a 30% e 90% dos recursos em saúde estavam localizados nos grandes centros urbanos. Recorrer ao médico ou comprar medicamentos estava fortemente condicionado pela classe social. Foi só com a Revolução de Abril que se consagrou no artigo 64.º da Constituição o direito fundamental à proteção da saúde a ser realizado através de um Serviço Nacional de Saúde universal, público e gratuito. O SNS nasceu a 15 de setembro de 1979 e embora apenas possa ser extinto alterando a Constituição, a sua organização e funcionamento são escolhas políticas, que vêm sendo feitas numa tentativa infindável de fazer da saúde um negócio.

As garras dos grandes grupos económicos, íntimos de Salazar e que hoje dominam o setor privado da saúde, estão cada vez mais profundas, orientando-se para o lucro e para as rendas do Estado. Só à esquerda se poderá encontrar a solução

O ataque ao SNS faz-se sentir desde os debates sobre a sua criação. Basta recordar que este viu a luz do dia apesar dos votos contra do PSD e do CDS. Muitas foram as vozes à direita que se ergueram para o acusar de ineficiência, de má gestão e de ser financeiramente insustentável. O que essas vozes, que ainda hoje gritam os mesmos argumentos, se esquecem de referir é o seu papel instigador do que criticam. Com alguma atenção torna-se fácil compreender que a maior parte dos defeitos apontados ao SNS foram e são provocados por quem aposta na sua descaracterização. Refiro-me a quem vê a saúde como mercadoria, como um bem de consumo igual a tantos outros, e astuciosamente impulsiona a privatização da mesma. A direita apostou e aposta no enfraquecimento do SNS, através de pequenas mudanças quase imperceptíveis, porque sabe que a saúde privada é um dos setores mais lucrativos da economia.

Logo em 1982 existiu uma tentativa, por parte de um governo da Aliança Democrática, de revogação da lei fundadora do SNS, o que foi impedido pelo Tribunal Constitucional. O primeiro assalto com sucesso foi corporizado pela revisão constitucional de 1989, que substituiu a palavra “gratuito” por “tendencialmente gratuito”, bem como a “socialização da medicina e dos sectores médico-medicamentosos” por a “socialização dos custos dos cuidados médicos e medicamentosos”. Esta alteração tornou possível a existência de novas taxas no momento da prestação de cuidados, aumentando as despesas das famílias em saúde, e o recurso à medicina privada e o seu pagamento pelo orçamento do SNS.

A segunda investida, mais profunda, realizada por um governo de Cavaco Silva, ocorreu com a revogação da lei instituidora do SNS e a sua substituição pela Lei de Bases da Saúde de 1990. Esta lei, que vigorou até 2019, veio consolidar a descaracterização da ideia fundadora do SNS, permitindo um verdadeiro desenvolvimento parasitário da iniciativa privada da saúde em Portugal. Com ela passou a pertencer ao Estado a responsabilidade de apoiar a iniciativa privada na saúde, em concorrência com o setor público, num verdadeiro abuso constitucional. Foi também esta lei que abriu as portas da gestão dos hospitais públicos ao setor privado, tendo ocorrido, já em 2002, a transformação dos hospitais públicos em sociedades anónimas. Posteriormente, em 2005, os hospitais SA passaram a Estabelecimentos Públicos Empresariais, pela mão do governo de José Sócrates, numa tímida tentativa de manter a natureza pública dos hospitais, mas mantendo a gestão empresarial, os contratos individuais de trabalho, a desestruturação das carreiras dos profissionais de saúde e a relação com o setor privado. Em suma, sucessivas alterações legislativas erodiram o SNS, tornando-o progressivamente mais fácil de assaltar pelo interesse privado.

Um outro condutor da crise do SNS, transversal a governos do PS e de direita, é a suborçamentação crónica. Com um subfinanciamento constante é impossível realizar investimentos, o que por sua vez se torna incomportável perante um parque hospital envelhecido, o aumento da carga de doença crónica associada ao envelhecimento da população, a necessidade de novos equipamentos, recursos humanos, a evolução tecnológica e medicamentosa. Seria ingénuo pensar que a despesa em saúde pode alguma vez adquirir uma tendência decrescente. O que tem acontecido, de um modo mais ou menos constante, é o Estado gastar, em termos relativos ao crescimento do PIB, menos com a saúde. E quem ficou a pagar o desinvestimento na saúde? As famílias e os profissionais de saúde. Do bolso das famílias passou a sair mais dinheiro para pagar medicamentos, taxas moderadoras, seguros de saúde ou cuidados privados. Por outro lado, os profissionais viram as suas carreiras destruídas, a desvalorização do seu trabalho e salário e a eliminação da exclusividade em troca de contratos precários. Pouco sobra a não ser a fuga dos profissionais para o setor privado, levando consigo serviços e utentes. E não são nem o profissional nem o utente os principais beneficiários desta porta giratória, mas sim os privados.

Mesmo o novo Orçamento de Estado, apresentado como o orçamento recorde para a saúde, constitui pouco mais do que um penso rápido para a fragilidade do SNS. São prometidos investimentos em novos hospitais, centros de saúde, cuidados continuados, requalificação de estruturas já existentes, dedicação plena dos profissionais, autonomia reforçada, mas sem atribuir verbas ou apresentar planos de concretização desses projetos. O PS não parece interessado em implementar nenhuma medida estrutural para afastar a predação dos privados em torno da sangria do SNS. Se não o fez em minoria, não o fará certamente em contexto de maioria absoluta.

O impasse em que ainda se encontra, em 2022, a nova Lei de Bases de 2019, inspirada por Semedo e Arnaut e aprovada à esquerda, contribui para que o ciclo vicioso em que o SNS se encontra floresça. A nova lei não tem tido nenhum efeito prático, visto que a sua regulamentação e documentos fundamentais ao seu funcionamento não foram criados. A consequência direta é que à medida que o tempo passa e a deterioração do SNS aumenta, aumenta a necessidade de contratualizar com o privado, que por sua vez cresce e aumenta o investimento, abarcando cada vez mais profissionais e serviços, que deveriam estar alocados em exclusividade ao SNS. Assim se entende o porquê de atirar mais dinheiro ao SNS, como se de uma bóia se tratasse, não baste para que este não se afogue. Esse dinheiro será meramente escoado pelas contratualizações com os privados, transformados em verdadeiros rentistas do Estado. Se queremos quebrar este ciclo temos de atuar já e de forma diferente, em múltiplos campos em simultâneo.

É urgente criar um regime de carreira em exclusividade para os profissionais do SNS que seja atrativo, opcional e com incentivos associados. É necessário investir em novas estruturas, tecnologia e informação centralizada, de forma a internalizar tudo o que neste momento está na mão dos privados. É preciso investir na prevenção da doença e promoção da saúde. Tem de existir um médico de família para todas as pessoas. O SNS tem de ser capaz de garantir cuidados de saúde que atualmente são praticamente inexistentes, como a saúde mental, oral e oftalmológica. Todos estes objetivos estão interligados e nenhum pode ser ignorado, obrigando à implementação de um plano de investimentos nacional e plurianual que vise a reforma do modelo assistencial do SNS.

São 42 anos de uma das maiores conquistas de abril. Ela tem sobrevivido graças à força dos seus defensores, que olham para o SNS como um cravo de abril incapaz de murchar. As garras dos grandes grupos económicos, íntimos de Salazar e que hoje dominam o setor privado da saúde, estão cada vez mais profundas, orientando-se para o lucro e para as rendas do Estado. Só à esquerda se poderá encontrar a solução.

Neste mês em que lembramos a resistência, levemos a peito a ideia de que o SNS é a liberdade na saúde.

Sobre o/a autor(a)

Estudante de Medicina na Universidade de Lisboa, ativista feminista
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