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Abril em 2014

Em 2014 teremos eleições – europeias, certamente; legislativas, provavelmente. O resgate sofrerá uma mutação mas, com o predomínio dos mesmos, teremos as mesmas políticas. E o ano será também marcado pelas comemorações dos 40 anos do 25 de Abril.

A curva do ano é o local onde se encontram analistas e profetas. Os primeiros observam episódios e esmiúçam o sentido do ocorrido. Os segundos perscrutam o horizonte em busca dos sinais do tempo que virá. Uns e outros encarregam-se nestes dias - nas televisões e nos jornais, nos blogues e no facebook - de desenhar sínteses sobre o ano que passou e o ano que virá.

Em 2013 o governo tremeu mas não caiu. Foi ano de manifestações importantes, da saída de Relvas e Gaspar, da invenção de um novo sentido para a palavra “irrevogável”. Aprofundou-se a política de austeridade, empresas públicas rentáveis entraram em processo de privatização, atacou-se o Estado Social. Apercebemo-nos também que, neste momento, ocorre um fluxo emigratório só comparável ao que aconteceu na década de 1960, num contexto em que existia fome, ditadura e guerra colonial.

Em 2014 teremos eleições – europeias, certamente; legislativas, provavelmente. O resgate sofrerá uma mutação mas, com o predomínio dos mesmos, teremos as mesmas políticas. E o ano será também marcado pelas comemorações dos 40 anos do 25 de Abril. Não é preciso ser um visionário encartado para prever que as forças políticas e sociais vão disputar bastante – como nunca se disputou – esse momento simbólico.

Basta lembrar-nos do que aconteceu em 2004 - com o famoso “Abril é evolução” - para percebermos como o governo e as forças que o suportam não terão pejo de reler o momento à luz das suas necessidades políticas. Mesmo que distante do espírito de Abril, a direita portuguesa irá encontrar formas de o comemorar, retirando-lhe toda a carga conflitual e emancipatória e inventando um palavreado oco sobre o “país”, a “mudança”, a “democracia” e o “Abril que é de todos”.

Será preciso recordar-lhes que o país mudou apesar da direita. E que as conquistas democráticas alcançadas – não só de natureza política, mas também social e económica – foram feitas contra o poder ancestral dos interesses que esta direita hoje representa. Na verdade, as políticas de austeridade em curso – privatizações, destruição das funções sociais do Estado, empobrecimento – são uma espécie de programa histórico da direita portuguesa, aplicado sob assistência. O entendimento do Tribunal Constitucional como uma “força de bloqueio” mostra bem como este programa histórico tem aspetos de revanche objetiva contra o processo de construção democrática do país.

Sabe-se que a memória de Abril é plural: condensa a queda da ditadura e a conquista da liberdade; o fim da guerra colonial e a independência das ex-colónias; disputas agudas pelo poder e o surgimento de lutas sociais que alargaram a “dimensão do possível” e envolveram segmentos da população que até então tinham permanecido silenciados. Quarenta anos depois, devemos lançar um olhar analítico sobre esse passado e os seus lastros. Também por isso, fazê-lo implica recusar os discursos que, por rotina mole ou interesse cínico, pretenderão liofilizar Abril.

Sobre o/a autor(a)

Historiador, doutorado em História, investigador do CES/UC.
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