Abortar o critério

porMiguel Guedes

17 de maio 2022 - 15:25
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O planeamento familiar e a saúde sexual, como todas as respostas que são dadas pelo SNS, podem e devem ser avaliadas. Confundir a liberdade individual com doença e fizer disso critério, porém, é inadmissível.

O aborto não é um crime, uma doença ou um vício. A ideia de que o critério de ausência da interrupção voluntária da gravidez poderia servir para calcular a componente remuneratória variável dos profissionais das Unidades de Saúde Familiar (USF) não lembra a ninguém que tenha a noção de que o aborto é um direito e um acto de vontade última da mulher.

Mas lembrou a técnicos especialistas de saúde, organizados em grupo de trabalho, supostamente eivados das melhores intenções, mas portadores de zero inteligência emocional. Tendo formulado a proposta que tiveram a decência de agora retirar, pedem desculpa a todas as mulheres que se sentiram ofendidas. Mas os médicos, os enfermeiros e os profissionais da saúde que iriam e continuarão a ser avaliados no seu desempenho por inaceitáveis critérios "Pavlov" mereciam mais respeito e, também eles, uma reparação.

Em nenhum momento, a vontade e o direito de uma mulher abortar se pode confundir com lacunas ou ausência de planeamento familiar. A violência que se passaria a exercer em cada USF se esta proposta fizesse caminho seria insustentável e diária. O mesmo se aplica às doenças sexualmente transmissíveis, onde também se voltou atrás. Critério adicional. Se querem avaliar os médicos também podem começar por perguntar aos doentes. Verdadeiramente importante seria avaliar o acompanhamento, monitorização e prescrição de exames que permitem detectar precocemente processos cancerígenos, onde as falhas na prestação de informação e alertas, sobretudo em idades mais avançadas, são gritantes.

O primado da política. Este processo é um bom exemplo onde a consciência e a pressão da sociedade civil foram um bem civilizacional que impediu uma disfunção técnica e um retrocesso castrador. Marta Temido, depois de ter sido tudo menos convincente na Assembleia da República, disse-o: o grupo técnico recuou na proposta para responder ao "sentir social". Mas não fosse o jornalismo, a atenção da sociedade civil, associações e sindicatos, dos médicos e do seu bastonário, dos enfermeiros, de alguns partidos e de alguns deputados (até do PS), e estaríamos - com toda a probabilidade - a começar a tomar conhecimento da forma como uma maioria absoluta envolta em pareceres técnicos se torna lassa, pouco crítica ou nada atenta em relação a questões fracturantes e fundamentais que até colocam em causa a igualdade de género e a Constituição.

O planeamento familiar e a saúde sexual, como todas as respostas que são dadas pelo SNS, podem e devem ser avaliadas. Confundir a liberdade individual com doença e fizer disso critério, porém, é inadmissível. Actualmente, olhar para o tema do aborto em alguns países de Leste ou nos EUA, onde os políticos adestram os técnicos, é assustador. Mas se o que os técnicos portugueses têm para propor são soluções estímulo-recompensa, estamos muito longe de um propósito que avalie e decida futuro.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” em 13 de maio de 2022

Miguel Guedes
Sobre o/a autor(a)

Miguel Guedes

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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