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40 anos depois: entre o ilusionismo e a falta de coragem

O Partido Socialista faz 40 anos. Poderíamos legitimamente perguntar o que é que aconteceu à segunda parte do seu nome.

As suas direções transformaram-no numa coisa estranha chamada “socialismo democrático”, uma espécie de terceira via à portuguesa, em que o projeto de socialização da economia, de construção de movimento popular e de ambição da igualdade como projeto central da política dão lugar a projetos da flexibilização e individualização do mercado de trabalho, na privatização dos poucos sectores estratégicos que restam no controlo público e na adaptação da vida à irreversibilidade das leis do mercado.

Mas mais do que discutir os percursos da transformação do projeto socialista no projeto social-liberal que foi sendo operado pelo PS, importante sobretudo fazer a pergunta que se discute um pouco por toda a sociedade: que alternativas políticas podem hoje ser construídas perante a destruição económica e social do país e para responder à escravatura da dívida?

Toda a gente percebe que, desde o 25 de Abril, nunca vivemos na sociedade portuguesa um momento tão decisivo. Os direitos conquistados por milhares de trabalhadores e por décadas de resistência popular e que se materializaram em direitos sociais e laborais, em serviços públicos, na gestão pública de sectores estratégicos da economia ou na democratização social e cultural do país estão todos postos em causa. A pretexto do pagamento da dívida que não pára de aumentar e a pretexto do cumprimento de um programa de empréstimo que decide antidemocraticamente as políticas que vão afetar a vida de todas pessoas que vivem em Portugal a economia portuguesa é dizimada, o Estado-Social destruído e caminhamos a passos largos para a bancarrota. Nunca, como agora, foram tão decisivas as escolhas estratégias capazes de responder à emergência do país. Os militantes do PS percebem isso, como toda a sociedade é interpelada diariamente com as escolhas corajosas que é preciso fazer.

40 anos depois da fundação do PS, António José Seguro é perentório na sua escolha que faz para o Partido Socialista: propõe “a construção de uma nova aliança, de uma nova coligação, que junte democratas cristãos, os humanistas, os sociais-democratas e todos os progressistas” para “devolver a esperança a Portugal”. Uma coligação para resistir à destruição do Estado Social e devolver “os valores da liberdade, da fraternidade e da solidariedade”.

Seguro já tinha enviado uma carta à troika a propor o fim da austeridade e recusando a destruição do Estado Social. Mas é também nessa carta que reafirma o compromisso do seu partido com a Regra de Ouro, com o compromisso com a institucionalização da austeridade a pretexto dos pagamentos das dívidas. E mesmo que Seguro queira renegociar juros e prazos, ficará sempre amarrado a um compromisso que o próprio insiste em reafirmar: o compromisso com uma Europa para quem a economia e a vida de quem trabalha pode ser absolutamente destruída a pretexto do pagamento de dívidas que não são possíveis de pagar, porque aumentam na mesma proporção que aumenta a austeridade, independentemente de quem a aplica.

A luta pelo Estado Social é indissociável da luta contra a troika, porque a sua política e o Memorando são a destruição concreta dos direitos sociais e dos serviços públicos, esvaziando o papel do Estado na economia e colocando a soberania das escolhas políticas dos países absolutamente interrompidas por políticas ultra-liberais não sufragas.

40 anos depois é sintomático que o PS viva entre a retórica e a falta de coragem política. 40 anos depois, o PS vive entre a proposta da renegociação da dívida e ao mesmo tempo o compromisso com a austeridade ad eternum que torna a renegociação um mero ilusionismo. 40 anos depois o PS vive entre a retórica do fim da austeridade e a narrativa de que o PEC IV era a salvação, quando toda a sua estrutura era feita na base da austeridade, da destruição dos direitos do trabalho e de colocar os trabalhadores a pagar a crise. 40 anos depois o PS continua entre a ilusão da defesa do Estado Social e a reafirmação do Memorando da troika cujo projeto era a sua absoluta destruição, porque foi feito para falhar e introduzir a inevitabilidade de mais austeridade e mais cortes nos serviços públicos.

A política ao centro é isto: ilusionismo, bluff, desistência e falta de coragem. A política ao centro é a inevitabilidade, a austeridade ad eternum, os direitos sociais atacados e a transferência de rendimentos do trabalho para o capital sob o mote da dívida.

Haverá certamente muitos socialistas para quem a única alternativa à escravatura da dívida é o fim da política da troika, o fim do seu memorando, uma renegociação corajosa da dívida (nos prazos, nos juros e nos montantes), a devolução de todos os salários e das pensões roubados a quem trabalha ou quem trabalhou e descontou toda a vida e a implementação de uma reforma fiscal que coloque quem mais ganha a pagar a crise. São essas vozes que se encontram nas ruas, nos encontros, nos debates e na resistência quotidiana. É nessa prática política, ativista e militante que, sem sectarismo mas com clareza política, se pode desenhar uma alternativa política concreta que responda a urgência. Um Governo de Esquerda contra a troika e a tirania da finança é o oposto do ilusionismo político que desiste de uma alternativa corajosa para Portugal e para a Europa.

Era nessa alternativa que o PS deveria estar, caso honrasse, um mínimo que fosse, a palavra socialismo, que insistem em ter no nome.

Sobre o/a autor(a)

Sociólogo e investigador
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