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35horas/4 dias de trabalho: além trumpismos, um chão para lavrar

Num país onde as 40 horas efectivas são ainda uma quimera para tanta gente e em que as 35 horas são tratadas como um delírio revolucionário, a proposta da “semana laboral de quatro dias” não será exercício bacoco?

Nos tempos recentes, o PS apresentou-nos a proposta da “semana laboral de quatro dias”, respaldada na descoberta de que o trabalho é, desse modo, mais produtivo, até porque restará aos “colaboradores” um dia de semana para que possam resolver os seus problemas pessoais, reduzindo o absentismo e garantindo que se sentem mais motivados.

Surgem-nos, todavia, algumas questões: num país onde as 40 horas efectivas são ainda uma quimera para tanta gente e em que as 35 horas são tratadas como um delírio revolucionário, isto não será exercício bacoco?

Fará sentido que um partido que governou durante seis anos e deixou tanto por fazer no campo do trabalho – sendo justamente essa a causa pela qual se desentendeu com os parceiros à esquerda -, nos oferecesse, então em refrega eleitoral, “seda em janeiro”?

Há naturalmente sérias dificuldades que devem ser enfrentadas pelo movimento trabalhista na sua luta pela redução real da semana de trabalho sem perda de rendimento. Mas elas são de uma ordem muito diferente em comparação com os contos aterrorizantes inventados por encartados economistas e outros porta-vozes da ordem vigente.

Os obstáculos reais que confrontam o trabalho resumem-se em dois ilustres vocábulos: “flexibilidade” e “desregulamentação”. Estes dois prezados slogans das personificações do capital nos negócios de hoje, e também na política, pretendem-se muito atraentes e progressistas. Na verdade, porém, condensam em si mesmos a brutalidade e a incerteza que reina no mundo laboral. Estes instrumentos surgem-nos frequentemente emparelhados com legislação anti-trabalho autoritária — desde as supressões de Reagan até às longas séries de viciosas leis anti-trabalho de Margaret Thatcher, mantidas, non dimenticare, pelo governo “New Labour” de Blair. E as mesmas pessoas que cunham de "flexibilidade" a difusão das condições de trabalho mais precárias são também aquelas que se atrevem a chamar a práticas da legislação autoritária anti-trabalho de “liberdade” e “democracia”.

Em Portugal, sabemos, a redução do horário de trabalho foi atirada para as calendas gregas, não obstante ter-se materializado no resto da Europa. Esta luta, de resto, está nos primórdios da história sindical: a primeira convenção da Organização Internacional do Trabalho, em 1919, fixou a jornada de oito horas diárias e 48 horas semanais.

Hoje, este debate torna-se ainda mais pertinente, se levarmos em conta que o aumento da produtividade, o progresso tecnológico e a automação podem desembocar em duas distintas veredas: ou concentramos o trabalho que existe em poucas pessoas, atirando cada vez mais gente para o desemprego ou subemprego e oferecendo ganhos incessantes aos patrões e accionistas, ou, ao invés, distribuímos os proveitos do desenvolvimento tecnológico por todos, permitindo que se trabalhe menos e com ganhos de rendimento.

Poderemos reconhecer que a proposta do PS vai ao arrepio do que acontece lá fora, em países como a Alemanha e França, onde a conquista das 35 horas para todos foi alcançada na viragem do milénio. Hoje, nessa Europa desigual, luta-se pelas 32 horas, contando com a premissa trazida pela batalha de 2000, em França, que aniquilou a ameaçadora ideia de que a redução horária se traduziria em despedimentos massivos, como sempre os liberais se apressam a embandeirar. Ao contrário, a justeza desta medida resultou na criação de 350 mil empregos.

Há que convir que a quem não faltou engenho e arte para se lançar à “ponderação da aplicabilidade” da semana laboral de quatro dias, não teve, pois, a coragem socialista para rasgar a lei laboral deixada por Passos-Portas-Troika, revalorizando a contratação colectiva e consagrando significado e força negocial aos trabalhadores.

A léguas da realidade laboral do presente, onde campeiam o abuso e a efemeridade do vínculo, este arrojo moderninho do PS serve somente para desqualificar as razões de ser da própria esquerda, num país onde nem está garantido o cumprimento efetivo da semana de 40 horas de trabalho, atropelada pelo teletrabalho e pela precariedade.

A semana de quatro dias de trabalho contribuirá significativamente para a produtividade e para a qualidade de vida dos trabalhadores, mas que esta tem de ser integrada numa lógica das 35 horas, como reivindicam as centrais sindicais, e num sentido de responsabilidade histórica que exige uma ampla transformação da lei laboral.

À esquerda, para além de combater forças reaccionárias no aqui e agora, preservando o que existe, caberá a exigência de futuro, abandonando a administração defensiva do outrora conquistado, a garantia do pouco ou do mal menor, sulcando novos caminhos no campo do trabalho, erigindo “as grandes alamedas” de que Allende nos falou.

Sobre o/a autor(a)

Assistente social, deputado municipal do Bloco de Esquerda na Assembleia Municipal de Espinho
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