Em 31 de outubro de 2000, a ONU adotou a Resolução 1325 — um marco histórico que reconheceu que as mulheres não são apenas vítimas dos conflitos, mas protagonistas na construção da paz. Pela primeira vez, a paz deixou de ser vista apenas como uma questão militar e passou a incluir a voz, a segurança e a participação das mulheres em todas as etapas — da prevenção dos conflitos às negociações e à reconstrução pós-guerra.
Vinte e cinco anos depois, há conquistas a celebrar: há mais consciência, mais políticas e mais mulheres à frente de processos de paz. Mas há também sinais preocupantes. Em todo o mundo, as mulheres continuam a ser alvo de violência e exclusão — e essa violência assume hoje novas formas e novos palcos.
A violência doméstica segue em níveis alarmantes. Em Portugal, continua a ser o crime mais reportado, e as vítimas são esmagadoramente mulheres. Mas a violência não é só física. Multiplica-se nas redes sociais, onde as mulheres — sobretudo as que ocupam o espaço público — enfrentam campanhas de ódio, assédio e intimidação. O mundo digital tornou-se um novo campo de batalha, onde se tenta silenciar a participação política feminina. Deputadas, jornalistas e ativistas são alvos preferenciais de insultos e ameaças.
Ao mesmo tempo, cresce uma agenda conservadora que procura travar avanços de décadas. Desde os ataques aos direitos reprodutivos nos Estados Unidos, até às restrições impostas na Polónia ou à retórica moralista que se infiltra na política europeia, o que está em causa é o controlo do corpo e da autonomia das mulheres. Também em Portugal, vemos tentativas de relativizar a violência de género, de desvalorizar políticas de igualdade e de transformar a palavra "feminismo" em provocação.
As feministas das Relações Internacionais há muito que desmontam a ideia de que guerra e paz são neutras em termos de género. Gillian Youngs mostrou como a política internacional foi construída a partir de um olhar masculino sobre o poder. Cynthia Enloe ensinou-nos que o militarismo não vive apenas nos quartéis — infiltra-se nas escolas, nas economias e até nas ideias de heroísmo e dever. E Betty Reardon lembrou que o patriarcado é, ele próprio, um "sistema de guerra": uma estrutura que naturaliza a violência e legitima a dominação.
A paz não é só o silêncio das armas. É também o fim do medo dentro de casa, o direito de andar na rua sem assédio, a liberdade de decidir sobre o próprio corpo, a igualdade de voz nos espaços de poder. A violência, por sua vez, não começa nem termina no campo de batalha. Ela atravessa o quotidiano — o lar, o trabalho, a economia — e prolonga-se na forma como as desigualdades estruturais moldam a vida das mulheres. A fronteira entre guerra e paz é muito mais difusa do que os mapas fazem crer.
A Resolução 1325 foi pensada para contextos de guerra, mas a violência também é urbana e quotidiana. No Rio de Janeiro, as recentes chacinas mostram como a guerra se vive nas ruas — e como são as mulheres, sobretudo mães e trabalhadoras, que enfrentam o luto e o medo, que exigem justiça e futuro. Não é por acaso que são elas que vemos nas reportagens, de microfone na mão, a gritar por dignidade quando o Estado falha. A paz, para elas, é concreta: começa em proteger os filhos, em cuidar da vizinhança, em recusar o ciclo da morte.
Em Portugal, a Resolução 1325 inspirou três Planos Nacionais de Ação sobre "Mulheres, Paz e Segurança". O último terminou em 2022, e desde então o país não tem um novo plano aprovado. A coordenação entre o Ministério dos Negócios Estrangeiros e a Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género mantém viva a agenda, mas sem um documento político com metas, financiamento e prazos definidos, o compromisso arrisca-se a ficar no papel.
Num tempo em que o autoritarismo e a extrema-direita crescem na Europa, falar de "Mulheres, Paz e Segurança" é mais urgente do que nunca. Porque a paz não se resume a tréguas — exige igualdade, democracia e direitos. Um país que não protege as suas mulheres, que não garante autonomia reprodutiva, que não responde à violência doméstica e digital, não pode dizer-se em paz.
Celebrar os 25 anos da Resolução 1325 é olhar para as mulheres que constroem paz todos os dias — seja no Rio de Janeiro, nas comunidades palestinianas sob bombardeamento, nas fronteiras da Ucrânia ou nas periferias de Lisboa. Como lembra Cynthia Enloe, a paz não é um estado: é uma prática que se faz e refaz nas escolhas de cada dia, nas políticas públicas e nas relações entre as pessoas.
Porque não há paz verdadeira sem igualdade, nem segurança real sem justiça. A paz é um verbo — e o futuro só existirá se continuarmos a praticá-la.