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A instrumentalizada severa austeridade

As medidas de austeridade que foram impostas mais as que estão em “banho-maria” para implementar, além de despóticas e de cruéis, são estúpidas e têm por intenção estupidificar-nos.

Estamos entregues à pandilha da calamidade. Vivemos a época do cataclismo nebuloso da austeridade imposta por uma autoridade de ocupação, numa espécie de tirania “Filipina” sediada em Berlim com sucursal em Paris. Temos um governo títere e reverente que executa ordenações indecorosas. Miserabilizam os trabalhadores com roubo de subsídios, corte nos salários e aniquilação dos direitos. Em jeito de compensação assimétrica recapitalizam a Banca, engrossam poderes patronais e instauram a ditadura da divida, do medo e do conservadorismo. Instigam a apologia da abdicação ressuscitando fantasmas do Portugal bafiento bem ao género salazarista de que temos de obedecer a quem manda.

Mais vale este do que nenhum…”. “Não queres, há mais quem queira…” . “Oh pá…temos que aguentar, eles é que mandam” . ”Estão mal habituados, antigamente trabalhavam de sol a sol e não resmungavam”.

Este léxico retrógrado e fascizante, impregnado do ardiloso slogan de que a crise toca a todos e suportado pela narrativa demagógica da inevitabilidade, é hoje uma hodierna tendência de (re)configuração de um velho paradigma. Esta barrela aos direitos laborais, esta desobrigação dos direitos sociais, este extermínio aos direitos pessoais, está ao serviço de um novo regime social assente numa violência ideológica que legitima, cada vez mais, o direito a não ter direitos. Esta opção pelo empobrecimento do trabalho, pela eliminação da providência social, pela exaltação à emigração, consubstancia uma política de capitulação do estado, enquanto construção coletiva, e de afirmação sistémica do individual numa adulteração perversa do conceito mundano de sociedade. Caminhamos de forma arriscada e orquestrada para os fitos de um Processo Reacionário em Curso, que pretende reduzir a nossa vida a uma condição arcaica de sobrevivência.

A austeridade que nos está a ser imposta é estrutural e é um dos instrumentos para a estratificação das classes sociais e profissionais criando subliminares mecanismos de desconfiança e aliciamento inter-pares. Instigam trabalhadores contra trabalhadores, atiçam pobres contra pobres, exaltam valores contra valores. A estratégia é quebrar a resistência para criar um exército de resignados, que fratricidamente se gladiam na contenda dosalve-se quem puder na selva da descartabilidade. Cada um vale por si enquanto deita o outro fora. Está montado o cenário do crime social, assente na privada e perigosa conceção de que a sociedade sou eu e os meus e cada um tem de saber desenrascar-se na bruma da indiferença.

O populismo é outro instrumento ao serviço desta perversa demagogia que subverte a razão e o conteúdo da contestação. Com um total esvaziamento ideológico começamos a discutir quanto ganhou o motorista do secretário de estado num fim-de-semana. Ou se a reforma do A – e este A por vezes é o primeiro da fila do sistema – chega, ou não, para pagar as despesas. O que importa é acender rastilho de conflito fugaz e superficial que contamine mentes ansiosas e com raiva circunstancial. De seguida o povo reivindica o fim da política e dos políticos dizendo que são todos iguais e que só querem “tacho”, clamando por o tal novo paradigma social sem coletividade. A história não se repete, mas por vezes copia-se. Com as devidas diferenças para não arriscar ignorar as semelhanças, veja-se o que aconteceu pós crash bolsista de 1929. Foi o início de vastas e duradouras consequências que endeusaram redentores e degeneraram em causas suporte de graves conflitos mundiais.

O embuste do cândido empréstimo monetário é o fulcral instrumento desta cogitada estratégia. As sacrossantas antevidências dos “rating`s” abrem alas aos intentos . As austeras medidas de austeridade vão sendo brandamente apresentadas como resgatadoras e transitórias, tendo como desígnio banalizar o aparente estado de exceção ao mesmo tempo que vão legitimando a permanência da usura. Abonam dinheiro para justificar conceder suplementos, numa sucessão de fatais resgates até à brutal implosão financeira dos países-alvo, que de seguida perdem a soberania e entregam de “mão-beijada” todos os capitais, bens e receitas económicas aos especuladores. Neste caso diga-se, empresas geradoras da dúvida que fomentam a dívida e absorvem o provento. É a agiota ditadura dos mercados a escaqueirar o arquétipo estrutural e civilizacional dos povos e das nações. Este filme da história contemporânea tem agora um “remake” pós-moderno à velocidade do instantâneo e com imagem planetária.

As medidas de austeridade que foram impostas mais as que estão em “banho-maria” para implementar, além de despóticas e de cruéis, são estúpidas e têm por intenção estupidificar-nos. Deixamos de ler porque não há dinheiro para livros. Não há cinema porque fecharam as salas. Não se pode viajar porque o combustível está muito caro. Não há carnaval porque é preciso trabalhar. Não é preciso ter férias porque é uma perda de tempo. Somos todos uns “piegas” porque só nos sabemos queixar. Vão mas é ao futebol e aproveitem para desanuviar tensões. Vejam televisão que tem tantos programas para se entreterem. Rezem e vão a “Fátima” pedir proteção divina para ver se nos livram desta crise. E o que é que nos faz crescer como pessoas? E o que resta de cada um de nós? Seres embrutecidos, intencionalmente manipuláveis e desesperadamente na busca de qualquer “coisa” sendo que essa coisa se projeta enquanto a procuramos.

Vamos desabando sem ver a derrocada e quando cairmos temos o “salvador”para nos libertar.

Em Portugal e neste governo, para além do diretório particular Relvas-mor, a marca ideológica desta conceção está a cargo do CDS, que embrulhado num engenhoso humanismo cristão faz percurso remidor das agruras da nação. Retoma o padrão retrógrado do caritativo e misericordioso. Intenta a entrega do pouco que resta de gestão pública na saúde à Santa Casa, num claro primado da “Opus Dei”. Concita o “papão” da insegurança para legitimar medidas de fascizante segurança. Impele a política dos “sonhos traídos” para criar atração ao ideal do devir.

Este é o rumo estratégico encenado por um aparelho de “batedores”, tanto se perfilam em diapasão governamental como orquestram o silêncio traiçoeiro da discórdia tática, que galga sobre um povo empobrecido e fragilizado para instaurar uma matriz política de desesperança que faça acreditar no “sebastianismo”. Enquanto isto projeta-se a ascensão apocalíptica do “grande” líder que entretanto se escapula do drama nacional pulando pelas suas lides internacionais.

Compete à política de esquerda desmontar esta urdida teia e fazer caminho de oposição com todos os que queiram caminhar contra estas malfadadas tendências, unindo a resistência pela ação da insistência, dando confiança a um povo que não verga e que dignamente se ergue. O povo de esquerda precisa de acreditar que há alternativas e que é na rua que marchamos juntos, que é na greve que difundimos a luta e que é na luta que alcançamos as causas e defendemos os direitos. A imensa força que temos pode transformar o imundo mundo que querem impor na sociedade próspera e socialista que almejamos. Não podemos ceder nem resignar, sob pena das gerações futuras, legitimamente, nunca nos perdoarem a indolência do mero observador, mais ou menos crítico.

Sobre o/a autor(a)

Professor. Dirigente do Bloco de Esquerda
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