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O caminho para a destruição do Transporte Público e a urgência da nossa luta comum

O direito à mobilidade dos habitantes das regiões de Lisboa e Porto será duramente atingido com as medidas que o Governo pretende aplicar.

O Governo prossegue o seu caminho da destruição do Transporte Público. A partir de 1 de Fevereiro, entrou em vigor um novo aumento de preços de transporte de +5%, em média. Em apenas um ano, o custo dos transportes públicos subiu, a nível nacional, mais de 25%! Isto quando a grande maioria dos portugueses passou a ganhar menos do que recebia em 2010, em resultado das políticas de austeridade que o Governo de Sócrates, primeiro, e depois, o Governo de Passos Coelho/Portas, têm aplicado como receita essencial para atacar a chamada crise da dívida.

É preciso dizer, antes de mais, que estes aumentos, brutais, escondem aquela velha realidade sobre a forma como se constroem as estatísticas. No fundo, é a mesma história de se fazer uma estatística sobre a quantidade de frango que cabe a duas pessoas se uma delas comer o frango todo e a outra pessoa não comer nada. Como as estatísticas se fazem sobre universos impessoais, o que resulta duma tal estatística é que, em média, cada pessoa comeu meio frango e, com isso, poderíamos ser levados a acreditar na linguagem cega das aparências.

O mesmo se passa com os aumentos dos preços de transportes. Se é um fato estatístico que o aumento médio se cifrou em mais de 25%, a verdade é que se considerarmos alguns títulos de transporte em concreto, como os passes do Metro de Lisboa ou as tarifas da CP/Lx, esse aumento representou subidas na ordem dos 45%-50% do custo do transporte no espaço de um ano, o que é absolutamente intolerável! Se considerarmos a redução do desconto nos passes para jovens (4_18 e sub-23) e para idosos, que desce para metade, e se juntarmos a circunstância dos salários terem sido reduzidos nominalmente desde 2010 até hoje, isto pode representar aumentos reais que podem atingir +85-90% no custo das deslocações na região de Lisboa!

Com esta política de preços o Governo anuncia um suposto equilíbrio financeiro dos transportes públicos, especialmente nas grandes áreas metropolitanas de Lisboa e Porto. Nada de mais falso.

No Plano Estratégico dos Transportes, aprovado pelo Governo em Novembro de 2011, o Governo alega que “a enorme dívida do setor dos TP” é insustentável para as finanças públicas. Já fizémos, noutro artigo, a demonstração da incompetência do Governo na análise que efetua sobre esta matéria no documento do PET. Nomeadamente quando chamámos a atenção para o fato de se tratar de um erro de principiante querer avaliar o desempenho económico e operacional de um setor como os transportes com base simplesmente nas receitas e custos de exploração anuais desta ou daquela empresa ou com base na comparação da oferta de lugares oferecidos versus os lugares ocupados (=passageiros transportados), ao longo de todo um ano.

Quem produz transporte público nas zonas urbanas sabe que uma das obrigações que a Lei de Bases dos Transportes Terrestres impõe a todos os transportadores (públicos ou privados) é a “obrigação de transportar”, o que significa em concreto, que cumprir essa obrigação pode significar que numas alturas do dia ou de cada semana ou do ano, haverá períodos do dia ou da semana ou do ano que os transportes (ou as infraestruturas) estarão plenamente utilizadas e outras alturas (na verdade, na maior parte das horas do dia ou da semana ou do ano) a capacidade oferecida para o transporte público de pessoas supera, em maior ou menor medida, a procura de transporte efetiva.

Ignorando esta realidade, que explica, por exemplo, porque razão não há memória de uma única cidade do mundo em que o sistema de transportes públicos dê lucro e dispense a subsidiação do Estado para o financiamento do setor (seja na ajuda aos investimentos, seja na ajuda à exploração), o Governo proclama um “cenário mirífico”quando espera “atingir um EBITDA equilibrado no final de 2012”, ou seja, um défice de exploração igual a zero…!

Chegados a este ponto da narrativa, das duas uma: ou o narrador (chame-se ele ministro ou secretário de estado) tem uma deficiência mental qualquer ou então estamos confrontados com mais uma grande mentira em que este governo se tornou especialista, depois destarte ter alcançado “tão bons resultados nas últimas eleições”, com as “juras” contra a “imposição de mais sacrifícios ao povo português” que Passos Coelho e Portas se fartaram de fazer.

Esta grande mentira tem, porém, um desígnio maior: preparar o terreno para o processo de privatizações que está anunciado.

Ao aumentar de forma tão brutal o aumento de preços dos transportes o Governo “limpa” o “trabalho sujo” que os privados teriam de fazer com um possível aumento de preços, assumindo o “odioso” de aumentos a níveis que nunca os privados teriam capacidade de assumir. E já foi avisando que não vai ficar por aqui.

Desse “trabalho sujo” faz parte os famosos “cortes” no serviço público de transportes, anunciados pelo Governo, a coberto de um chamado “Grupo de Trabalho” que funcionou como “lebre” das políticas mais gravosas para o transporte público, cujo objetivo imediato seria, não de reestruturar o serviço público de transportes nas regiões metropolitanas de Lisboa e Porto mas sim de desestruturar o próprio sistema de transportes, para mais facilmente o poder privatizar, às fatias, deixando de funcionar como um sistema. Neste contexto, ficam em causa questões estratégicas tão importantes como o papel de uma Autoridade Metropolitana de Transportes. Não é por acaso que esta entidade pública deixou de ser referida como entidade pública regional com a missão de ser um instrumento essencial das políticas públicas na promoção, organização, integração, planeamento e investimento dos sistemas de transportes nas regiões metropolitanas, alavancada por empresas públicas de transportes, que estruturam o próprio sistema, como acontece com outras grandes regiões metropolitanas por esse mundo fora, de que são exemplos Madrid, Paris ou Londres.

A onda de rejeição que tais cortes cegos provocaram na sociedade, obrigaram o Governo de Passos Coelho/Paulo Portas a moderar os seus desígnios. Em Lisboa, das 23 carreiras que o Governo tinha “ordenado” a sua supressão, passou-se para a supressão de 6 carreiras. Grande parte das carreiras que tinham extensões suburbanas nos arredores de Lisboa, vão-se manter. Mas isso não elimina o essencial da questão: é que o direito à mobilidade dos habitantes das regiões de Lisboa e Porto será duramente atingido com as medidas que o Governo pretende aplicar. Prevê-se que a partir de Março, mais de 50% das atuais carreiras da Carris vão sofrer cortes substanciais na sua frequência, nos horários de funcionamento, no encurtamento de carreiras, na qualidade do serviço de transporte oferecido.

O resultado vai ser menos transporte, mais caro, menor cobertura e acessibilidade à rede, mais transbordos, pior articulação entre horários e modos de transporte, maiores tempos de espera e aumento dos tempos de viagem, a par com autocarros, elétricos e comboios sobrelotados e, portanto, menor atratividade dos transportes públicos. Para já não falar nos serviços noturnos ou de fim-de-semana que, em muitos casos, desaparecem ou são reduzidos a uma expressão simbólica, que não serve nada nem ninguém.

As consequências já se adivinham: em vez de se caminhar para uma mobilidade cada vez mais sustentável nas grandes cidades de Lisboa e Porto, os seus habitantes, na ausência de alternativas de transporte público, vão ser “convidados” a usar meios próprios de deslocação, como o automóvel, com consequências gravosas ao nível do ambiente, dos engarrafamentos e do desperdício de recursos, da redução do espaço público, do acréscimo acidentes, aumento dos consumos energéticos, desgaste dos veículos e custo da sua manutenção, agravamento das nossas contas com o exterior. Com esta política, a partir de 2012, a fatura das emissões dos GEE vai chegar e, a prazo, ameaça tornar-se muito maior do que os défices atuais das empresas públicas de transporte. Será que Passos Coelho e Paulo Portas vão assumir a responsabilidade das suas decisões ou vão, como já fizeram alguns dos seus “camaradas” de partido, fugir dessas responsabilidades?

Numa época em que o aumento do preço dos combustíveis aconselharia a que o Governo promovesse um transporte público mais fácil, barato e integrado, para o fazer surgir como a alternativa para uma solução de mobilidade de futuro, em que se exigiria que a política de estacionamento fosse articulada com o transporte coletivo e em que as mais-valias urbanísticas servissem para financiar os investimentos de modernização e de desenvolvimento dos sistemas de transportes metropolitanos, o Governo tudo faz para destruir esse caminho e nos conduzir a um beco sem saída.

E as consequências também já se notam ao nível das próprias receitas das empresas, em resultado dos aumentos brutais neste último ano: a evolução das receitas no último trimestre de 2011, aponta para quebras na ordem dos 10% nas receitas de exploração das empresas, como o Metro ou a Carris. Este efeito é o resultado do ciclo vicioso de prejuízos que a política de austeridade deste Governo implica no setor. Nos transportes, como no país, acrescentar medidas recessivas à recessão só pode ter um efeito: agravar os défices de exploração das empresas que o próprio Governo anuncia querer combater.

Por outro lado, a menor extensão dos cortes não deixa de colocar outro problema que está na calha: o despedimento de trabalhadores no setor. Com este Governo já se percebeu que o “argumento” da racionalização de custos só tem um significado: despedir pessoas. Em vez de se cortar nas mordomias dos dirigentes das empresas que, na grande maioria dos casos, são “filhos”, “protegidos” ou “alinhados” com os poderes estabelecidos, sejam eles públicos ou secretos, em vez das empresas públicas deixarem de funcionar como “agências de emprego e de promoção de carreiras dos seus apaniguados”, agravando os seus custos de funcionamento, este Governo segue a cartilha de sempre: atira-se contra os mais fracos, contra aqueles que não tem nenhuma responsabilidade na situação a que se chegou: os trabalhadores.

Por isso, é que é importante continuar a lutar contra esta política de destruição do setor público dos transportes. A greve, como a do  dia 2 de Fevereiro, convocada por todos os sindicatos do setor, da CGTP, da UGT ou independentes é o caminho para nos opormos com mais força, mais coragem, mais determinação pelo direito ao trabalho e pelo direito à mobilidade de todos e para todos.

Sobre o/a autor(a)

Economista de transportes
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