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“A idade da pedra não acabou por falta de pedras”

Pois não. A idade da pedra não acabou por falta de pedras. Mas acabou. A idade da banca também não irá acabar por falta de bancos, mas há-de ter um fim.

Não se pense que o capitalismo, essa coisa liberal, neoliberal, ou financeira, já chegou ao patamar máximo da paranóia. Este sistema, o capitalismo, tem uma enorme capacidade de se repensar, reagrupar, perdurar, regovernar. A perfídia consegue sempre ir mais além. O sistema tem uma enorme plasticidade. Tem, sim senhor. Mesmo nas crises mais doentias tem a síndrome da rolha.

Este sistema fez a crise de 29 e assistiu impávido ao suicídio dos seus amantes dos arranha-céus, transformados de repente em plataformas suicidárias. Exportou a crise para a Europa que ficou enlouquecida, Europa imbecil e maldita com o fascismo a passear-se-lhe pelas avenidas atormentadas por tanques de guerra e botifarras de soldados com a cruz gamada a tiracolo. Este sistema, num vórtice de paranóia, fez Auschewitz, chorou crocodilamente Auschewitz e fez o simulacro de Nuremberga. Deu direitos com bonomia, quando a relação de forças lhe era desfavorável e tirou direitos com a mesma hipocrisia com que os tinha dado; apoiou ditadores fanáticos e sanguinários e retirou-lhes o apoio com o mesmo à vontade e a mesma leveza; fez a guerra e regozijou-se com a paz; lamuriou-se na recente crise financeira, culpado e arrependido, culpado e manipulador, e rosna agora agressivo e despudorado, exigindo que lhe paguemos as loucuras. Há sempre mais, à espera da sua hora de surgir.

A plasticidade é aterradora.

 

A pedra. Primeiro lascada e depois polida. Tanto metal à volta para fundir, tanta mina por explorar, tanto caminho para percorrer e as mãos a pensarem apenas com sílex.

A banca, esse pedregulho que caiu na nossa vida, impede que olhemos as saídas, as alternativas que temos um pouco por todo o lado.

Observemos este sítio em que vivemos.

A corja bancária e credora, a troika e o governo satélite da troika, já deram em uníssono, o seu veredicto: tirem-se as cordas à guitarra portuguesa para que ela toque melhor.

Uma a uma, as cordas onde os sons capricharam num encantamento auditivo, num rio solto de música colorida, são retiradas por decreto. Para que toque melhor.

Os verdes anos de Abril que aí se revelaram, todo um som que apazigua a alma, já não conseguem sair da guitarra mutilada.

Pretendem que circulemos calmamente num qualquer empedrado paciente, obediente, inerte, de uma qualquer avenida, ou rua, ou praça.

É preciso é que não se ouçam os nossos passos. É preciso é que a rua não arqueje, não ganhe gente, não grite de aflição, é preciso só que seja pisada e não responda.

Convocam sindicatos e partidos de esquerda para serem pastores de ondas. Esquecem-se que a onda, as ondas, são forças da natureza. E a natureza não se apascenta.

 

Adeus férias sonhadas. Aquelas férias a que se teve acesso, pela primeira vez, depois da imobilidade enraizada das gerações anteriores. Good-bye. Adeus futuro.

Quando a geração que assistiu acesa e vibrante ao 25 de Abril pensou que a memória atávica da pobreza podia ser ultrapassada ao mandar os filhos para a Universidade, quando pensou que a penúria das vidas anteriores podia ser remida, sai-lhe na rifa uma banca endoidecida, empedernida e crua, e uma Europa perdida e tresloucada de lideranças, uma Europa a piar convocações para o sacrifício; sai-lhe nesta lotaria agónica, um Portugal tolhido de assaltos e desnortes, com os partidos maioritários a rolarem e rebolarem nas auto-estradas, sendo que o betão integra a parte de leão das construções ditas democráticas. Betão parceiro.

Pelo betão desgovernado se trocaram as reformas de quem tinha trabalhado uma vida inteira; pelo betão parceiro se trocou a dignidade de um salário mínimo legal; pelo betão e outros materiais congéneres se cimentaram desigualdades tão desiguais, tão profundamente grosseiras, que se olha para elas e se fica mudo de espanto e indignação.

Betão, parcerias, Madeiras, BPNs, são as pedras que lascadas e malditas que nos impedem o caminho. São o contributo generoso para a crise lusitana. São aquela parte que ostenta o carimbo, Made in Portugal.

O resto, a demência, a avidez, a crise, a agiotagem, a especulação é a cooperação pródiga do processo de retrocesso que o sistema vai oferecendo. Todos os dias.

 

Deuses sombrios festejam a doença e zombam da saúde. Deuses de refugo. Calhaus imprestáveis.

É isso que essa gente, essas estruturas, essas gerências e ingerências são, rebotalho planetário, escória económica. Tudo mascarado de esperteza científica e matemática.

Os governos, e sobretudo este governo, são as peças sobresselentes destas políticas de mau viver. Passam o tempo a pensar como melhor agradar ao capricho económico do lixo financeiro e aprimoram as medidas de subvenção ao patronato.

Nunca ninguém pensou que pudessem ir tão longe. Nem eles próprios, nos devaneios mais febris, ousaram pensar que podiam extorquir tão facilmente horas de trabalho aos trabalhadores portugueses; que podiam amputar, assim, desta forma tão elementar, as indemnizações por despedimento; que podiam gatunar e chafurdar nos subsídios de férias e Natal. Fazem o circo, com a propaganda da inevitabilidade a soar 24 por dia, e tiram o pão.

A direita deixa sempre pegadas da sua governação. Esta direita não deixa só pegadas. Deixa sulcos profundos no tecido social, sulcos tão cavados e intensos, que entre ela já há alguns a assustarem-se. Têm medo que o tecido rompa de vez.

 

Neste preciso momento, os povos europeus têm um tufão dentro deles. Dilacerados por perdas sucessivas, por desempregos brutais, por cortes cegos e irracionais, os povos carregam dentro de si tornados que de um momento para outro se podem soltar. Esta raiva, é um vulcão legítimo, como que autorizado pelo desmando a que se chegou.

 

A idade da pedra não acabou por falta de pedras.

A idade da banca também não irá acabar por falta de bancos, mas há-de acabar.

Tal como a idade desta direita governadora não há-de acabar por falta de ganância. Mas há-de acabar.

Nem que seja à pedrada.

Sobre o/a autor(a)

Advogada, dirigente do Bloco de Esquerda. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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