O critério da negociação orçamental

porJoana Mortágua

10 de outubro 2020 - 22:23
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O custo social do desemprego paga-se caro, um preço que todas as democracias vão lamentar se continuarem a calcar as costas dos trabalhadores como se fossem os degraus da recuperação económica.

O mais importante numa negociação é não deixar escapar a verdade. O Bloco de Esquerda negociou orçamentos do Estado suficientes para entender esta premissa e saber que em qualquer caminho para um acordo político é preciso distinguir entre uma divergência de posições e uma divergência de intenções. É muito mais plausível uma aproximação das primeiras do que das segundas.

Este é o significado do apelo de Catarina Martins para “mais concretização e menos jogo político” nas negociações do Orçamento do Estado de 2021, uma tentativa de sair do impasse para recentrar o debate na clareza sobre as intenções de cada um. Para o Bloco de Esquerda, o valor de um acordo é a resposta robusta à crise social e económica que salve o trabalho e o salário.

Com verdade, as propostas que estão há meses em cima da mesa do Governo têm a coerência de quem já leva muitos anos a dizer que não é empobrecendo ou alienando os recursos do país que se responde à crise. Há quem ache que este discurso é batido e desnecessário mas o nervosismo dos patrões com a possibilidade de continuar a aumentar o salário mínimo mostra o contrário.

Li mais do que um editorial sobre a razoabilidade das nossas exigências à luz dos “tempos que mudaram”, um convite ao miserabilismo social que cheira a austeridade. É verdade que a pandemia trouxe muitas novidades mas o grande problema está nas coisas que nunca mudam: a fortuna dos mais ricos aumentou em 15% só entre abril e julho. Não bastam palavras, quem acha que não se responde às crises com as respostas do passado tem de ser consequente nas suas intenções.

É preciso cumprir as contratações para o SNS já acordadas com o Bloco de Esquerda, reforçar as prestações sociais e furar o emaranhado de impossibilidades que parece proteger sempre o negócio da Lone Star em prejuízo do povo. “Ah mas não dá para tudo”, pois, talvez não dê para compensar as PPP’s rodoviárias. E por falar em respostas do passado, como é que ficamos em relação ao Código de Trabalho, “o intocável”?

Às vezes estamos tão ocupados a olhar para baixo que nos esquecemos de reparar no que está em cima. As crises não são apenas falências, destruição de emprego e crise social, também são acumulação de riqueza e concentração de capital. Este agravamento das desigualdades tem muitos mecanismos e um deles é a ideia de que a manutenção de uma fortuna tem maior valor social do que a manutenção de um posto de trabalho.

Quantos desempregados são precisos para que um rico continue rico? É próprio dos liberais tratar o desemprego como um problema individual em vez de um custo coletivo, e talvez naquelas cabeças faça sentido permitir que grandes empresas lucrativas – como aconteceu na GALP – despeçam trabalhadores em plena crise. É aí que o bom senso de quem já viu este país em menos carne do que osso se deveria impor.

Quem poderá condenar a revolta de um trabalhador de uma empresa que apesar de receber apoios públicos, o despediu? Ou dos precários que são despedidos para serem contratados dois meses depois pela mesma empresa? O custo social do desemprego paga-se caro, um preço que todas as democracias vão lamentar se continuarem a calcar as costas dos trabalhadores como se fossem os degraus da recuperação económica.

As propostas que estão em cima da mesa do Governo desde julho são as que permitem responder ao trabalho e à democracia, essa é a transformação que conta e a que estamos empenhados em alcançar nesta negociação orçamental. Se não fosse assim, para que serviria um acordo entre o Bloco de Esquerda e o Partido Socialista?

Artigo publicado no jornal “I” a 8 de outubro de 2020

Joana Mortágua
Sobre o/a autor(a)

Joana Mortágua

Deputada e dirigente do Bloco de Esquerda, licenciada em relações internacionais.
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