O imperialismo é um sistema e a guerra o seu fruto

porAlberto Matos

09 de October 2022 - 22:15
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Agradeço ao Mário Tomé a atenção que dedicou ao meu artigo e respondo à sua pergunta: “O imperialismo é um sistema de dominação mundial do capital financeiro, não se reduz a uma única hiperpotência nem um somatório de potências”.

Caro Mário Tomé:

Antes de mais, agradeço a atenção que dedicaste ao meu artigo e venho esclarecer um equívoco: “Num recente artigo saído no Esquerda.net o camarada Alberto Matos pergunta se ficamos com Lenine ou com o império”.

De facto, o “recente artigo” foi publicado no Esquerda.net a 26 de Fevereiro, dois dias após a invasão da Ucrânia pelas tropas russas. “Com Lenine ou com o império” é uma resposta direta à diatribe de Putin, que declarou “a Ucrânia independente uma criação de Lenine e dos seus camaradas”.

Andarias distraído e só o leste porque to enviei, em recente troca de mensagens. Não é grave, mas o tempo e o modo têm importância – estes sete meses foram ricos de acontecimentos.

Começo por responder à pergunta: “a que império se refere Alberto Matos quando nos questiona se estamos com Lenin ou com o império”.

1. O império e o aspirante a “czar de todas as Rússias”

Putin prossegue, há mais de duas décadas, um plano sistemático para a reconstituição do império czarista e não se detém perante nenhum crime: dos massacres na Chechénia à Ossétia do Sul, desmembrando a Geórgia; a anexação da Crimeia e as ingerências na Bielorrússia e no Cazaquistão, apoiando ou trocando ditadores de turno; manipulando tensões no Cáucaso (Arménia e Azerbaijão) e nos confins da Eurásia (Quirguizistão e Tajiquistão).

A guerra na Ucrânia não é um ato isolado, um acidente ou uma resposta precipitada a provocações da NATO que, obviamente, sempre existiram. E se as coisas lhe corressem de feição, a Transnístria é logo ali ao lado, na Moldávia.

Recorrente é a manipulação das minorias russófonas, disseminadas pelas diversas repúblicas desde os tempos soviéticos e maioritárias nalgumas regiões, alimentando a chama separatista. Uma tática nada original que evoca o “anschluss” austríaco de 1938 e a invasão da Checoslováquia pelas tropas hitlerianas, sob pretexto de proteger a minoria alemã dos “sudetas”.

2. Caçadores de impérios

Nos antípodas, Lenine e internacionalistas como Rosa Luxemburgo na Alemanha ou James Connoly na Irlanda, recusaram seguir a traição da social-democracia que adotara o lema “operários de todo o mundo, matai-vos uns aos outros” na carnificina da I Guerra Mundial. E opor-se à guerra implicava lutar, desde logo, contra “o seu próprio” imperialismo. Por isso foram acusados de “traição à pátria” e alguns assassinados nas prisões, como Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht.

“Traição à pátria” foi também a acusação do fascismo contra aquelas e aqueles que defendemos a independência das colónias e recusámos servir nas fileiras do exército colonial – acusação que muito nos honra, aquela vitória já ninguém nos tira (ler “25 de Abril pôs à guerra e ao império”).

Contra a “pátria” imperialista, Lenine e os bolcheviques lutaram e venceram pela saída unilateral da Rússia da guerra e pelo desmembramento do império czarista. A independência da Ucrânia, da Polónia e da Finlândia não resultaram apenas das condições draconianas do tratado de Brest-Litovsk (troca de território pela paz para salvaguarda do poder soviético), mas corresponderam à convicção profunda que Lenine defendeu, em polémica brilhante com Rosa Luxemburgo.

Sobre a Ucrânia, já em 1913, Lenine escrevia no “Rabochaya Pravda” um artigo sobre a resolução adotada no congresso dos estudantes a favor de uma Ucrânia independente. Os cadetes (Constitucionais-democratas, o partido da burguesia russa) atacavam a resolução por ser “separatista”, “aventureira”, um “delírio” e uma “aventura política”. “Os marxistas jamais esquecem o elementar direito de lutar pelo reconhecimento da completa igualdade entre as nações e o seu direito à autodeterminação”.

Só neste sentido, Putin tem alguma razão: Lenine sempre defendeu a independência da Ucrânia, mas esta não foi uma criação bolchevique, tem raízes históricas muito anteriores.

3. Um fascista é capaz de dizer tudo e o seu contrário

Apontas-me uma aparente contradição:

“Alberto Matos acusa Putin de invocar a “descomunização” da Ucrânia para justificar a invasão. Não é que isso importe muito, mas a alegação de Putin é a de “desnazificação da Ucrânia” o que não deixa de ser irónico”.

Como deverias saber, Putin usou ambas as alegações – “descomunização” e “desnazificação”. Isto não é de estranhar num protofascista, como lhe chamas. No meu artigo usei outra expressão, no mesmo sentido: “um pide é sempre um pide”, capaz de servir qualquer amo e de cometer qualquer crime sem hesitações. O problema é que hoje temos um “pide” (ex-KGB/FSB) como chefe de Estado da segunda maior potência nuclear do planeta, a ordenar a invasão dum país vizinho.

Na abordagem à II Guerra Mundial referes “o apoio significativo dos ucranianos aos invasores nazis recebidos como libertadores”. Embora com “uma razão objetiva importante: o Holodomor ou genocídio ucraniano (…) que provocou milhões de mortos pela fome”, esta afirmação incorre nos riscos de todas as generalizações – entre os ucranianos há classes e posicionamentos políticos opostos – que alimentam a diabolização de todo um povo.

Mais à frente, reconheces que “quando os nazis mantiveram o mesmo quadro de feroz repressão, a mesma organização da produção no campo de “matar pela” fome e uma política de deportação e genocídio dos judeus, os ucranianos [também não terão sido todos…] tornaram-se determinados combatentes pela libertação da URSS”.

Ou seja, o pretexto da “desnazificação” da Ucrânia invocado por Putin vale tanto como o da “descomunização”. Se a “democracia” do regime de Kiev deixa muito a desejar, o que dizer da Rússia onde os opositores da guerra são o primeiro alvo da repressão? E se na Ucrânia (que está a defender o seu território) pontificam nazis como os do célebre “batalhão Azov”, o que dizer dos facínoras chechenos de Ramzan Kadyrov que, muito antes desta guerra, massacraram o seu próprio povo ao serviço do tirano Putin?

Sobre nazismo não há inocentes nesta guerra: Azov e Kadyrov são espelhos gémeos; Putin financiou e apoiou a ciberguerra de desinformação das campanhas de Trump, Bolsonaro e da extrema-direita europeia. Claro que as e os Le Pen, Ventura, Salvini, Abascal e quejandos viraram (provisoriamente) o bico ao prego, mas sobre coerência de fascistas estamos conversados…

4. O imperialismo é um sistema de dominação mundial do capital financeiro, não se reduz a uma única hiperpotência nem um somatório de potências

Vamos ao núcleo das nossas discordâncias: o conceito de imperialismo.

O teu texto contém uma afirmação repetida, clara e concisa: “Imperialismo só há um! o dos USA e mais nenhum!” e “imperialismo (norte-americano, não há outro)”.

E daqui retiras uma conclusão:

“A classificação quer da Rússia quer da China como potências imperialistas carece de rigor e apenas serve para sustentar as manobras dos EUA de domínio global. Quer a China quer a Rússia são potências com peso económico e militar muito importante, mas relativo.

A Rússia sustenta o seu poder relativo na exportação das imensas matérias-primas que pode usar como arma contra quem delas dependa, mas principalmente na ameaça nuclear que usa desde que se deparou com a resistência ucraniana. A ditadura protofascista de Putin e a sua agressão brutal à Ucrânia (é) considerada imperialista pelo mainstream e pelos vistos por Alberto Matos.”

Descontado o “piropo” de me colares ao mainstream, vamos ao que interessa.

O imperialismo é um sistema de dominação do mundo pelo capital financeiro, inseparável da guerra, como ficou patente nos dois conflitos mundiais do século XX. O imperialismo adaptou-se ao desmantelamento do sistema colonial, adotando o neocolonialismo. O neoliberalismo e a globalização capitalista deram-lhe asas e a queda do muro de Berlim um novo fôlego para estender a exploração sem limites aos confins do planeta. A guerra, indispensável à sobrevivência do domínio do capital financeiro, tornou-se infinita. Invertendo Clausewitz, hoje a política (imperialista) quase se resume à continuação da guerra por outros meios.

O capital financeiro transnacional criou instrumentos de gestão global, como o FMI, a OMC, o G7, o G8 ou o G20, mas não pode prescindir dos Estados que detêm o monopólio da violência… e da guerra – apesar de também esta ir sendo privatizada, em outsourcing sob controlo estatal. Sob chantagem nuclear, as principais potências têm guerreado por interpostos países, evitando confrontos diretos; mas as coisas poderão descambar, como está à vista na Ucrânia.

O imperialismo, como sistema mundial, não se resume a uma hiperpotência nem tão pouco a um somatório de potências de dimensão variada que o integram – o todo é maior e muito mais complexo que a soma das partes. Mas já que colocas o desafio, analisemos o carácter das principais potências imperialistas.

a) USA – Subscrevo por inteiro a longa lista de mais de um século de crimes e atentados do “pistoleiro-mor” do capitalismo: desde a “caça às bruxas” do macartismo à Baía dos Porcos, as operações Condor na América Latina, o Vietname, a Indonésia, a Jugoslávia, as duas guerras do Iraque, o desastre do Afeganistão… Tudo ilustrado com referências a obras-primas do cinema, ou não fosses um cinéfilo de primeira água.

b) Rússia – “O que sustentávamos sobre o caráter imperialista da ex-URSS carece de demonstração… leninista”? Mas o capitalismo monopolista de Estado é apontado em “O imperialismo, estado supremo do capitalismo” como uma categoria típica do capital financeiro na época do imperialismo; em termos práticos, este imperialismo (socialista nas palavras) deixou a sua marca expansionista na Hungria, na Checoslováquia e atolou-se no Afeganistão – não foi o primeiro nem o último…

Após a desagregação da URSS, o leilão das empresas e de toda a propriedade pública foi abocanhada por máfias pré-instaladas no Comité Central do PCUS, nos ministérios e no KGB. Neste processo autofágico de acumulação primitiva do capital privado valeu tudo e não faltaram (literalmente) pistoleiros – vale a pena ler Henri Alleg, jornalista comunista que tive o privilégio de conhecer em Portugal e em França. Assim nasceram os oligarcas – russos, ucranianos e outros – que se contam entre as maiores fortunas do planeta.

Capital financeiro altamente concentrado, armas nucleares, militarismo expansionista, despotismo político… O que faltará para classificar a Rússia atual como imperialista? Simbolicamente, a primeira sanção do “ocidente” foi a exclusão do sistema BIC SWIFT de pagamentos interbancários, uma espécie de expulsão do “clube dos ricos” que só não teve maiores efeitos práticos porque a maior potência financeira do mundo (a China) deu uma mão a Putin. Mas quando a China agarra a mão, o braço que se cuide…

c) China – milionários no Comité Central

Se não há dúvida de que a Rússia é uma potência imperialista, o que dizer da China, que desafia abertamente a hegemonia dos EUA? Desde a primeira década do século XXI, a China é o maior detentor da dívida pública norte-americana e o maior importador mundial de petróleo. A nível da ciência e tecnologia, nomeadamente de IA, a China tem como meta ultrapassar os EUA até 2030. A “Nova Rota da Seda” é o chapéu de um vasto leque de investimentos bilionários em cerca de 70 países, com uma presença cada vez mais forte em África e em todos os continentes – convém não esquecer como o Estado chinês abocanhou a privatização da EDP e da REN, em pleno período da troika…

Mantendo a retórica estatal “socialista”, o capitalismo privado chinês floresceu sob o lema “enriquecei-vos” lançado por Deng Xiaoping e entusiasticamente posto em prática pelos próprios filhos. Os milionários passaram a ter assento no Comité Central do PC da China, o que diz tudo sobre a natureza de um regime que reúne “o pior dos dois sistemas”: “capitalismo selvagem, desregulação social, desastre ambiental, ausência quase absoluta de direitos laborais e da liberdade sindical, tudo isto combinado com a ditadura burocrático-militar de partido único, em nome do comunismo”.

Acabo de citar a Resolução da 2.º Conferência da UDP – AP, de 2006. Além do caráter da China e da Rússia, debatemos conceitos em voga sobre os BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China) e os países emergentes (África do Sul, Indonésia…), como peças do sistema imperialista, em polémica com as teses que os consideram um “polo de desenvolvimento alternativo” ou até “socialista” (China) ao imperialismo da tríade EUA-UE-Japão. Todos evoluímos no nosso pensamento, mas sem perder a memória… de elefante.

A tese “imperialismo só há um, o americano e mais nenhum” não resiste à análise concreta dos factos. Além dos BRIC e outros países emergentes, as velhas potências europeias (Inglaterra, Alemanha, França, Itália…), isoladamente ou agrupadas na UE, deixaram de ser imperialistas? O rearmamento alemão, a pretexto da invasão da Ucrânia não é uma brincadeira nem mera oportunidade de negócios para os fabricantes de armas norte-americanos. Esta decisão, tomada por um governo social-democrata-liberal-verde, pode vir a revelar-se trágica (mais uma vez na História) numa época em que emergem nacionalismos fascizantes no continente europeu – olhai a Itália!

Podíamos falar ainda de outras potências ligadas ao chamado “bloco ocidental”, como o Canadá e a Austrália. É certo que vivem sob o chapéu militar da NATO e dependem do complexo militar-industrial dos EUA. Mas, mesmo entre elas, é forçado considerar todas as potências como meros apêndices norte-americanos. A crise económica, financeira e energética estimula forças centrífugas e nacionalistas em diversos países (alguns com capacidade nuclear), incluindo nos EUA, como vimos na era Trump – e ninguém pode garantir que esse perigo esteja definitivamente afastado.

Insisto: o imperialismo é um sistema de dominação mundial do capital financeiro, não se resume a uma única hiperpotência nem tão pouco a um somatório de potências.

5. A paz nas mãos dos povos, pois claro!

Esta guerra devastadora que perdura há mais de sete meses só tem uma solução: acordos de paz que respeitem o princípio da integridade territorial da Ucrânia, a neutralidade face aos blocos militares e a sua progressiva desmilitarização; uma ampla autonomia regional que respeite a língua e a identidade dos povos que a integram, só possível numa democracia plena que já não existia, muito antes da invasão do exército russo.

Propostas avançadas há meses por partidos da esquerda europeia, incluindo o Bloco. Sem deixar de apontar o dedo ao invasor, sublinham que a escalada militar só pode agravar o conflito. Mas uma paz justa e duradoura não é sinónimo de capitulação imposta sobre os escombros da Ucrânia, cujo povo tem todo o direito (e o dever) de se defender.

A propósito, o que quer dizer a tua frase: “desde o início, as condições para um cessar-fogo e um acordo de paz estão em cima da mesa, só que ignoradas“? Levas a sério as condições de Putin? Já agora, quais? O reconhecimento das autoproclamadas “repúblicas populares de Donetsk e Lugansk” ou a anexação pura e dura pela Federação russa, após “referendos” sob ocupação militar? O abocanhar de todo o litoral do Mar Negro, incluindo Odessa e, quem sabe, a Transnístria?

Em Fevereiro escrevi:

A esperança hoje mora na resistência civil ucraniana e nos internacionalistas russos que ousam manifestar-se contra a guerra, em plena Praça Pushkin”.

Subestimei o exército ucraniano, que suspeitava estar minado pelos russos (os comandantes estudaram nas mesmas academias), bem como o apoio em armamento e treino da NATO, que cresceu exponencialmente após a invasão. Em sentido contrário, não tinha a medida do desastre em que se converteu a “operação militar especial”. Acontece aos mais poderosos exércitos do mundo: no Vietname, no Afeganistão…

Seja qual for o desfecho da guerra entre exércitos, a última e decisiva palavra cabe aos dois povos irmãos: a tenacidade da resistência ucraniana e a mobilização dos pacifistas russos. Apesar da repressão ditatorial de Putin, os protestos contra a guerra e a mobilização forçada estenderam-se da praça Pushkin a lugares recônditos da Rússia, o número de desertores e refratários não para de crescer. Como sabemos de experiência vivida, é também por aí que os impérios começam a ruir.

Reafirmo: “A NATO não evitou a tragédia que se abate sobre o povo ucraniano. A NATO é o melhor pretexto de Putin, tal como Putin é o pretexto da NATO”.

Como é óbvio, o Bloco só podia ter votado contra o alargamento da NATO – neste caso à Suécia e Finlândia, ainda por cima à custa duma traição ao povo curdo. Continuamos na luta pela dissolução da NATO e de todos os blocos militares, sem apoiar nenhum imperialismo para, supostamente, combater outro.

Orgulhosos por defendermos há décadas NEM NATO, NEM PACTO DE VARSÓVIA, hoje NEM NATO, NEM PUTIN.

6. Notas finais

Viva o petróleo, o carvão e de novo, com música, a energia nuclear”.

Subscrevo em dobro ou em triplo, incluindo as “verdes” China e Rússia, cujo amor ao planeta esperemos não se torne verdadeiramente nuclear…

Uma constatação, que não uma surpresa: enfiaste a carapuça alheia. “Com Lenine ou com o império” visava sobretudo a posição do PCP, incompreensível para tantos eleitores e militantes. Ironia das ironias, saíste tu a terreiro.

O posicionamento face às guerras é sempre, historicamente, clarificador. A guerra na Ucrânia já instalou divergências entre quem proclamava a convergência.

Alberto Matos
Sobre o/a autor(a)

Alberto Matos

Dirigente do Bloco de Esquerda
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