Bodes expiatórios e alarmistas: o regresso da "guerra contra o terror"

16 de January 2010 - 0:00
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Umar Farouk Abdul Mutallab embarcou no voo 253 da Northwest em Amesterdão a 25 de Dezembro, aparentemente com os componentes de um dispositivo explosivo escondidos nas roupas interiores. Quando o avião fazia a aproximação a Detroit, tentou detoná-lo. Os passageiros e a tripulação subjugaram Abdul Mutallab e apagaram o fogo que ele tinha acendido antes que os explosivos detonassem.



Imediatamente, os média mainstream entraram em modo automático. "Especialistas em terrorismo" preencheram horas de emissão nas Tvs a cabo com especulações sobre a ligação à Al-Qaeda, baseadas em relatos de que Abdul Mutallab tinha viajado ao Iémen em Agosto para frequentar uma escola de línguas, e em vez disso dedicara-se a estudar o Islão numa mesquita com reputação radical.



Mais uma razão, de acordo com os partidários da "guerra contra o terrorismo", para fazer sistematicamente o perfil racial de muçulmanos e árabes; para o uso da tortura contra Abdul Mutallab e qualquer outro suspeito; e para a imediata retaliação contra o Iémen, que é hoje, dizem-nos, o centro das operações da Al-Qaida.



O senador republicano Jim DeMint denunciou a "conversa mole" da administração Obama sobre compromissos, sobre o encerramento de Guantánamo - estas coisas não vão apaziguar os terroristas". O aterrorizador-em-chefe Dick Cheney correu aos microfones para sentenciar: "Estamos em guerra, e quando o presidente Obama finge que não estamos, isso torna-nos menos seguros."



A Casa Branca e os democratas do Congresso responderam às cambalhotas, para parecerem duros. Obama regressou das suas férias no Havai com promessas de "descobrir a fundo" as causas de o atentado bombista não ter sido evitado antes de acontecer. Jane Harman, importante deputada da Comissão de Segurança Interna do Congresso, declarou que a administração devia rever os planos de libertar iemenitas inocentes de Guantánamo.



Mas o pânico bipartidário - em resposta a um primitivo atentado bombista que felizmente foi frustrado pelos próprios passageiros - a cada dia parece tornar-se mais desvairado.



No fim-de-semana, o tenente-coronel na reserva Thomas McInerney apareceu na Fox News a propor que as autoridades dispam todo o homem muçulmano entre os 18 e os 28 anos que embarque num avião, dentro dos EUA ou em viagem para lá. "Se não o fizermos", disse, "há uma grande possibilidade de perdermos um avião".



A âncora da Fox ainda argumentou: "Isso é um pouco forte" - mas só porque, disse, "não vai funcionar, pelo menos neste país".



Podia-se assistir à Fox e a outros canais de notícias durante horas sem ouvir uma única pessoa afastar-se do pressuposto assumido - de que os actos terroristas são cometidos exclusivamente por jovens muçulmanos do sexo masculino.



* * *



Houve mais uma coisa que faltou na cobertura dos média mainstream do atentado bombista - qualquer debate real sobre as acções de uma força muito mais bem organizada que a Al-Qaeda, com muito mais recursos e uma capacidade de violência numa escala incomparavelmente mais vasta.



Noutras palavras, os militares dos EUA.



"Pelo que se entende", escreveu Glenn Greenwald da Salon.com, "o principal desejo de ano novo dos média é que bombardeemos e ocupemos mais países muçulmanos em 2010, e que ninguém nesses países tente ripostar com qualquer violência. Que expectativa mais bizarra".



Como assinala Greenwald, a "guerra contra o terrorismo" dos EUA está a ser travada não só no Iraque e no Afeganistão, mas crescentemente no Paquistão, no Iémen e na Somália, com ataques de aviões não-tripulados (drones) Predator em operações encobertas ou nem isso. Acrescentem a esses cinco países, activamente nos centros de interesse dos EUA, as acções de Israel, cão-de-guarda de Washington no Médio Oriente, que faz ameaças de morte e de destruição em todo o Médio Oriente e concretiza-as contra os palestinianos. E ainda há as ameaças contra o Irão e o apoio da Casa Branca aos regimes autoritários árabes, como o Egipto.



Cada atrocidade e acto de repressão levado a cabo nestas ocupações ou operações ou intervenções aprofunda a amargura e o ódio em relação aos EUA por parte do povo que muito provavelmente nada tinha a ver com Osama bin Laden ou a Al-Qaeda. Como escreveu Greenwald:



"Constantemente espalhamos a morte no mundo muçulmano. Não é muito visível, mas é o que é feito. Insisto: Independentemente da justificação, que achamos que vai acontecer se continuarmos a invadir, a ocupar e a bombardear países muçulmanos, e a armar e a permitir que outros o façam? Não é óbvio que as nossas acções em cinco frentes vão provocar que pelo menos alguns muçulmanos - sujeitos a constantes imagens de tropas americanas instaladas no seu mundo e mortes de civis muçulmanos - queiram ripostar a violência?"



Basta olhar para os sentimentos sanguinários desencadeados entre os americanos por uma fracassada tentativa de atentado [na véspera de Natal]. Que sentimentos estamos a provocar com uma "guerra" de tantas frentes que dura há uma década (e continua a aumentar)?



* * *



Os alarmistas não esperaram para renovar os seus gritos de guerra contra a Al-Qaeda. Mas uma semana e meia depois de o atentado bombista ter falhado, não havia sequer tantas provas reais da ligação de Abdul Mutallab à Al-Qaeda.



Na sua emissão de rádio semanal, Obama disse: "Sabemos que ele viajou para o Iémen, um país que luta contra uma pobreza esmagadora e revoltas mortíferas. Parece que ele se reuniu com um afiliado à Al-Qaeda, e que este grupo - a Al-Qaeda na Península Arábica - treinou-o, equipou-o com os explosivos e convenceu-o a atacar o avião dirigido à América."



A única declaração de facto é que Abdul Mutallab viajou para o Iémen. A frase "parece" indica que o que se segue é suposição.



De facto, a melhor informação acerca de Abdul Mutallab foi oferecida ao governo dos EUA antes que o nigeriano de 23 anos entrasse num avião para os EUA. O pai de Abdul Mutallab, um banqueiro aposentado, contactou a embaixada dos EUA na Nigéria para dizer que o filho tinha deixado de o contactar durante a sua prolongada estadia no Iémen. Disse a dois agentes da CIA que o filho tinha adoptado "opiniões religiosas extremadas", e uma das suas últimas mensagens dizia: "Devia esquecer-me. Não vou voltar nunca."



O nome de Abdul Mutallab foi integrado numa extensa lista de vigilância, mas não a uma mais específica onde poderia ter sido apanhado quando comprou o bilhete de avião para os EUA - em dinheiro - em meados de Dezembro.



Mesmo assumindo que Abdul Mutallab tenha contactado a facção da Al-Qaeda instalada no Iémen, não se trata de uma operação high-tech de grandes recursos - ou mesmo muitos membros. As estimativas de tamanho da filial da Al-Qaeda no Iémen parecem expandir-se nos artigos de imprensa à medida que os dias passam, para chegarem a 200. Mas trata-se ainda de uma ínfima fracção da população do Iémen, de 23,6 milhões de pessoas.



Comparado às vastas conspirações relatadas por "especialistas em terrorismo" nos telejornais, o atentado de Abdul Mutallab foi primitivo. Não requereu coordenação ou colaboração ao nível dos ataques do 11 de Setembro - apenas alguns materiais disponíveis na maior parte dos países do mundo, incluindo os EUA, e sorte para iludir a detecção da segurança do aeroporto.



"A força real da Al-Qaeda", escreveu o jornalista Patrick Cockburn, do Independent, "não é poder 'treinar' um fanático estudante nigeriano para coser explosivos nas roupas interiores, mas a capacidade de poder provocar uma reacção exagerada dos EUA a cada ataque fracassado."



A administração Obama apressa-se a alinhar as suas frenéticas medidas de aumento de segurança e a delinear planos de operações militares no Iémen. Este é outro aspecto da "guerra contra o terror" - fazer parcerias com regimes repressivos em nome da luta contra a violência e a intolerância.



O governo do Iémen é notoriamente corrupto e brutal. É um dos poucos países do mundo com um recorde capaz de rivalizar com os EUA, e onde o programa de raptos da CIA despachou detidos para serem torturados por um regime aliado. As forças militares iemenitas têm colaborado alegremente com as operações de "guerra contra o terrorismo" dos EUA, especialmente quando elas fortalecem as suas actuais campanhas contra os grupos de oposição no Norte e os secessionistas no Sul.



Mas Obama diz que "assumiu a prioridade de fortalecer a nossa parceria com o governo iemenita, treinando e equipando as suas forças de segurança, partilhando informações e trabalhando com eles."



Os EUA deram no ano passado 67 milhões de dólares ao Iémen para treinamento e apoio, como parte do programa de contra-terrorismo - apenas o governo paquistanês recebeu mais. E de acordo com o general David Petraeus, que foi enviado por Obama ao Iémen para se reunir com membros do governo, essa quantia vai mais que duplicar em 2010, para cerca de 150 milhões, logo que essa verba for aprovada pelo Congresso.



O que estas volumosas quantias vão conseguir, para além de aumentar a contagem de cadáveres provocados pela "guerra contra o terrorismo" e pela própria guerra do governo iemenita contra os seus opositores? O próprio pai de Umar Farouk Abdul Mutallab forneceu ao governo dos EUA toda a informação necessária para frustrar o atentado bombista, e essa informação não foi levada em conta.



A verdade é que a "guerra contra o terror" não torna os americanos ou outros mais imunes à violência. Pelo contrário, tornou o mundo mais perigoso.



Quando os líderes políticos pedem medidas ainda mais repressivas em nome da segurança, apenas estão a seguir o caminho conveniente para evitar serem acusados de "fraqueza" em relação ao terrorismo. Mas há um objectivo mais profundo - legitimar o uso da repressão governamental e retalhar mais os nossos direitos.



O alarmismo tem também um efeito. De acordo com uma sondagem da Rasmussen, 58% dos americanos dizem que Abdul Mutallab deveria ser submetido ao afogamento simulado e outras formas de tortura para lhe arrancar mais informação. Este é o legado de uma campanha consertada pelo establishment e os média para estimular a hostilidade em relação aos árabes e muçulmanos, ao mesmo tempo que se ocultam os crimes cometidos pelo governo dos EUA no Médio Oriente.



Se Barack Obama ou qualquer membro do governo americano se importassem realmente com a segurança, acabariam com os ataques aéreos no Iémen, poriam fim às ocupações do Iraque e do Afeganistão, ofereceriam reparações pela guerra dos Estados Unidos contra os muçulmanos e o Médio Oriente, e promoveriam a democracia e as liberdades civis em casa e pelo mundo como as únicas garantias contra a tirania e a opressão.



O último medo do terrorismo está a ser usado para ter um efeito oposto. A direita quer apavorar os cidadãos dos EUA para que cederem ainda mais as suas liberdades civis e apoiarem outra incursão militar no Médio Oriente - e liberais como Barack Obama estão ansiosos por alinhar. Não podemos deixar que a política dos EUA seja sequestrada por aqueles que cinicamente usam cada tentativa terrorista para tentar atacar os nossos direitos e obter luz verde para a guerra.



5 de Janeiro de 2010



Tradução de Luis Leiria

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