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Se não tens razões para viver, encontra uma para morrer

Eram três, jovens, desesperados, desamparados, tiveram a rua como mãe e o seu bairro como pai. Que fazer desta vida efémera? Terão a vida eterna, enquanto os outros, que sucumbiram às tentações, queimarão no inferno... Desta vez, têm a sua vingança... Por Emir Sfaxi
Salafistas empunham um cartaz com a seguinte frase em inglês: "Não à democracia Nós só queremos o Islão!"

Eram três, jovens, desesperados, desamparados, tiveram a rua como mãe e o seu bairro como pai. Não eram brilhantes nos estudos, as condições pouco favoráveis não lhes permitiram obter um diploma ou terminar o secundário.

Sob a era da ditadura, o regime deu-lhes a oportunidade de se deixarem ficar indefinidamente, perdidos entre gerações.

Com a democratização da Internet e a compra de um PC, a sua principal ocupação era as redes sociais, onde “matavam tempo” durante o dia, à noite era o café ou algumas cervejas (quando tinham dinheiro) no bairro... Conseguiram pequenos empregos, cada um por seu lado, mas o seu temperamento “orgulhoso” de jovens de bairro era considerado violento e pouco disciplinado pelos empregadores.

Orientaram-se então para outras “especialidades”, agora “irmãos de armas”, isto valeu-lhes uma passagem pelas esquadras onde foram espancados em grupo e individualmente... Mas vingaram-se, não imediatamente, não no bairro, mas no domingo, no encontro habitual para apoiar a sua equipa, onde esta juventude aprendeu a odiar a polícia, transformada no símbolo de todo um sistema, o regime de opressão. O estádio é o seu lugar de livre expressão, irão insultar e atirar algumas pedras, contra os seus opressores, a animosidade contra os polícias será reforçada a cada vez...

Depois crescem, depois a vida fica dura, o tempo é longo... De noite entre jovens, discutem o futuro, um futuro incerto, incompreendidos das gerações, incompreendidos de eles mesmos, querem viver, existir, que os pais se orgulhem deles... Como? Não é a altura de refletir, é a altura de esquecer, encharcando-se de álcool, tomando certos medicamentos, fumando um charro... Amanhã será outro dia.

Pouco tempo depois reencontrar-se-ão a dois, estão tristes mas felizes pelo amigo, que lhes tinha falado disso, saiu de alvorada para atravessar o mar a caminho de outros horizontes, para outra vida... Pensavam que ele falava do Eldorado, mas apenas partiu a caminho de outra miséria; clandestinidade, noites ao relento no frio glaciar, ele viveu de novo uma desilusão... Arranja empregos informais, por pouco não entrava no tráfico mas foi salvo por um dos seus compatriotas que lhe propôs “ganhar a vida pregando a palavra de Deus”, encontro numa mesquita de fortuna, improvisada na cave de um edifício mal arejado. As pregações do imã que foi expulso do seu país, metem-lhe medo mas tranquilizam-no. Ele fala da punição divina sobre os que não fazem as suas orações, das guerras contra a religião, de verdadeiras cruzadas e da glória dos mártires...

Entretanto, os acontecimentos precipitam-se na Tunísia, é a revolução, os dois que ficaram no país terão a sua vingança final, a esperança de outra vida, um ar de liberdade... A vida tornar-se-á mais radiosa e têm, desta vez, a impressão de ter empreendido qualquer coisa, “fizeram a revolução”.

O terceiro, expatriado, teve ordem de voltar a Tunes, terá a missão de defender o Islão, ameaçado agora no seu país natal. Mas não apenas na Tunísia, nestas terras livres, ele deverá reforçar as fileiras do exército de Deus que levará a cabo a guerra santa, terá por refúgio as mesquitas dos bairros que escapam a qualquer autoridade. Regressará ao seu país, ao seu bairro e começará a convencer os seus antigos amigos a aderirem ao combate do bem contra o mal. A sua missão não foi nada difícil, terá bastado dissuadi-los de que outros querem roubar-lhes a “sua revolução” e que é necessário absolutamente defendê-la. A vida para estes três tem de novo um sentido...

É agora ou nunca a oportunidade de lavar os pecados, a ocasião de aceder ao paraíso, de ter uma razão de viver: “morrer para espalhar a voz de Deus”…

Sentiram-se de há muito oprimidos por esta classe social, estes belos carros que nunca terão, estas belas raparigas que jamais poderão abordar, estas grandes casas onde só morarão em sonhos, estas boates e hotéis onde sempre foram barrados à entrada... Agora terão melhor, melhor que esses incréus, ladrões e militantes do RCD... Que fazer desta vida efémera? Terão a vida eterna, enquanto os outros, que sucumbiram às tentações, queimarão no inferno... Desta vez, têm a sua vingança...

Um partiu para a Síria, o outro para o Mali, o restante fica na Tunísia, os três unidos para toda a vida, encontrar-se-ão mais tarde na mesma cama, uma cama de autópsia...

Este texto é também o de uma autópsia, a do cérebro de um salafista...

Artigo deEmir Sfaxi1, publicado em nawaat.org


1 Emir Sfaxié engenheiro de software tunisino, tem o blogue mou9awma.blogspot.com e é jornalista especializado em tecnologia.

(...)

Neste dossier:

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