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A luta dos precários das artes do espectáculo
O movimento dos intermitentes do espectáculo é um movimento crescente que, graças à visibilidade intrínseca à profissão de muitos dos seus membros, pode criar muitos receios ao poder político e aos grandes interesses televisivos. Já marcou muitos pontos. Aqui se faz o ponto da situação desta luta.
Por Bruno Cabral
Na era da cultura massificada, as palavras "teatro", "cinema", "televisão" e outras artes do espectáculo são geralmente sinónimas de "sonho" e "lazer", eventualmente "alienação", "mobilização", ou "intervenção", mas dificilmente o espectador imaginará que a vida das pessoas por detrás das produções são precárias.
Porque a ficção faz sonhar, a imagem veiculada é sempre de profissionais de sucesso, que vivem bem, fazem o que querem, porque a indústria do lazer e os meios de comunicação criam referências sociais cor de rosa, dificilmente se pensará nas terríveis condições de trabalho das séries ou de muitos programas de televisão.
Pois é, a esmagadora maioria dos trabalhadores das artes do espectáculo e do audiovisual estão a recibos verdes, sem direitos laborais, nem direitos sociais. São milhares de trabalhadores desagregados, trabalhando em sectores muito diferentes, técnicos e artísticos.
Nunca são abrangidos por contratos de trabalho porque as leis laborais nunca foram pensadas para dar direitos a quem trabalha por períodos curtos sucessivos para entidades empregadoras diferentes, é isso que chamamos a "intermitência": os espectáculos, as rodagens, a grande parte das apresentações culturais têm um determinado tempo de vida, e depois acabam. Os trabalhadores passam assim de um grupo para outro, e é esta mobilidade que permite a diversidade das produções. Por isso dizemos que a "intermitência" é a natureza da profissão. Mas esta intermitência não deveria significar insegurança laboral, injustiça social.
Os intermitentes têm ainda por cima muita dificuldade em organizarem-se pois não têm local de trabalho fixo, os colegas variam de produção em produção, a disponibilidade de cada um é intermitente como a sua profissão (um assistente de produção, por exemplo, em cinema, nunca trabalha menos de 13h por dia, 6 dias por semana, durante vários meses!).
Um esboço de movimento social
Há um ano surgiu a Plataforma dos Intermitentes, que junta mais de uma dúzia de associações e sindicatos da dança, do teatro, do cinema, do circo, da música e do audiovisual, lançando uma petição exigindo uma lei laboral que proteja os profissionais.
O movimento tem ganho uma influência crescente, conseguindo juntar cada vez mais pessoas nas suas diversas iniciativas. No passado dia 19 de Outubro, promoveu-se um dia de sensibilização, conseguimos que fosse lido um manifesto em quase todas as apresentações de teatro do país, em muitas filmagens, festivais e ensaios. Este manifesto alertava e consciencializava os colegas e os públicos para a realidade laboral intermitente. Quando se lê um texto sobre precaridade nas plateias de todo um pais, consegue-se chegar a milhares de trabalhadores e espectadores ao mesmo tempo, que não podem deixar de ouvir este grito de afirmação.
Num sector em que, até há pouco tempo, as preocupações específicas de cada uma das áreas se sobrepunha a uma dinâmica transversal que permitisse exigir direitos básicos para todos, em que não havia poder reivindicativo, em que mesmo a noção de "intermitente" do espectáculo era inexistente, em que cada um estava metido no seu canto, uma grande união e uma identidade de movimento emergiu.
Através de um discurso muito concreto sobre as injustiças dos recibos verdes e da falta de direitos laborais, conseguimos consolidar esta nova consciência de classe intermitente. As perspectivas de reivindicações consistentes aos vários níveis do poder político e a prestação regular de contas sobre os avanços das discussões e das iniciativas fizeram com que muitos acreditassem no movimento e o apoiassem. É um movimento crescente que, graças à visibilidade intrínseca à profissão de muitos dos seus membros, pode criar muitos receios ao poder político e aos grandes interesses televisivos.
Ponto da situação
O governo avançou há alguns meses com uma lei. Mas era só fogo de vista. Em vez de regulamentar os intermitentes, iria atingir colegas que têm actualmente contrato de trabalho e precarizá-los. Era uma lei hipócrita, que só serviria para flexibilizar os trabalhador inseridas actualmente em estruturas do estado (Companhias Nacional de Bailado, Teatro Nacional...) e para calar as vozes que se tinham levantado.
Queriam arrumar a questão o mais depressa possível, passando por cima dos intermitentes em vez de alargar o debate e promover uma lei séria que responda às necessidades das pessoas. Revelaram mais uma vez a prepotência e autoritarismo do governo. O grupo parlamentar do Partido Socialista até propôs algumas alterações que reforçavam o projecto do governo e fizeram tudo para despachar a lei em Julho na Comissão do Trabalho e Segurança Social (CTSS).
A Plataforma não engoliu e rejeitou a lei no seu conjunto. A perspectiva de ter toda a classe unida contra a lei, sem um único ponto para se defender, desmobilizou o governo. A aprovação foi adiada e as discussões retomaram na especialidade em Outubro. Os intermitentes continuaram a promover acções de sensibilização, como o dia 19 de Outubro. Começaram a utilizar novos meios, como vídeos no You Tube, alcançando cada vez mais pessoas.
O grupo parlamentar do Partido Socialista fez algumas novas emendas e marcou a aprovação em especialidade para 13 de Novembro, recusando-se a ouvir novamente os parceiros sociais, sob o pretexto de que não havia tempo. Todas as organizações profissionais, asim como os partidos de oposição responderam em coro: não há urgência, é preciso mais tempo para análise e discussão. A Plataforma dos Intermitentes organizou mais uma acção em véspera do dia 13: Parem, escutem e olhem. (Não atropelem os intermitentes). A CTSS adiou a aprovação uns dias, sem abrir perspectivas para uma nova discussão de fundo.
Na proposta actual do PS, os técnicos não estão abrangidos. A principal questão - a segurança social para os intermitentes- não é pensada . Em vez de incluir milhares de trabalhadores das artes do espectáculo, o sistema vai continuar a afastá-los. A estratégia não é nova: afastar as pessoas do estado-providência, para descredibilizá-lo e abrir o caminho para a revisão do código laboral, e a flexisegurança à la Sócrates. Mas os pontos marcados pelos Intermitentes já foram suficientes para demonstrar que, mesmo muito recente, é um movimento que tem pernas para andar e organizar trabalhadores do terceiro sector da nossa economia, a indústria cultural, e afrontar com criatividade e consistência o governo.
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