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Khadafi resiste cruelmente, mas esta revolução árabe democrática está longe de ter acabado
O mundo tem ainda de adoptar uma designação concertada para os grandes acontecimentos que se verificam por todo o Médio Oriente. Durante a finalíssima e impressionante fase egípcia, eu andava perdido nas profundezas do campo francês, com as emissões do Serviço Internacional da BBC a aparecerem e desaparecerem no rádio, ao fim da noite e pela manhã. Mas rapidamente me convenci de que a designação que lhe atribuiu o Le Monde, num artigo de Gilles Kepel, o famoso especialista em fundamentalismo islâmico, demonstraria ser capaz de a sintetizar com precisão. Ele denominou-a “revolução democrática árabe”.
É indubitável e globalmente árabe. No momento em que um país árabe, a Tunísia, soltou a faísca, ateou-se uma fogueira, propagou-se um contágio, com todos os árabes a depositarem de imediato as suas esperanças – e os seus misteriosos criadores originais parecem tê-lo compreendido ou mesmo planeado – de que se espalhasse a toda a «nação árabe». Todos se reconheceram nas aspirações do povo tunisino e a maioria parecia acreditar que se um povo árabe podia obter o que todos tinham aspirado durante tanto tempo, os outros também poderiam fazê-lo.
Não há dúvida de que é evidentemente democrática. Outros factores, certamente, a inflamaram bastante, sobretudo os socioeconómicos, mas a concentração neste aspecto singular e a ausência prática de outros lemas facciosos ou ideológicos foi notória. Tão verdadeiramente notória que alguns dizem agora que este irromper da democracia como ideal e força politicamente mobilizadora equivale a uma “terceira via” na história árabe moderna. A primeira foi a do nacionalismo, provocada pela experiência do domínio colonial europeu e por todo o seu legado, do desmantelamento da “nação árabe” à criação de Israel, e pelo desejo posterior e continuado do Ocidente de dominar e configurar a região. A segunda, que só no Irão não árabe conseguiu verdadeiro poder, foi o “Islão político”, provocado pelo fracasso do nacionalismo.
E é duplamente revolucionária. Primeiro, na própria condução da revolução e na novidade e criatividade absoluta de uma juventude apolítica e com estudos que, utilizando a Internet como ferramenta, a ateou. Em segundo lugar, e de uma forma mais convencional, na profundidade, na dimensão e no inesperado da transformação no interior de uma vasta ordem existente que parece manifestamente destinada a esboroar-se.
Árabe, sim, mas não no sentido de os árabes irem novamente por sua conta. Muito pelo contrário. Nenhum outro agregado político fez alarde, durante tanto tempo, de uma tamanha colecção de dinossauros, esses empedernidos sobreviventes de uma era anterior, totalitária; nenhum outro perdeu as vagas de “poder do povo” que varreram o império soviético e os despotismos da América Latina, Ásia e África. Congregando-se finalmente em torno deste valor, hoje universal mas essencialmente ocidental, denominado democracia, reincorporam-se de facto no mundo, ficando a par com a História que os tinha deixado para trás.
Se bem que tenha sido em Tunes que a celebrada «rua árabe» primeiro se agitou, o país que os árabes de todo o lado esperavam que se agitasse depois – além do seu próprio – era o Egipto. Isso seria equivalente a uma garantia virtual de que a agitação acabaria também por lhes chegar. Porque sendo o mais importante, populoso e prestigiado dos estados árabes, o Egipto foi sempre um modelo, às vezes um grande agente de mudança, para toda a região. Foi durante a época nacionalista, depois de o presidente Nasser ter derrubado a monarquia em 1952, que desempenhou de uma forma mais determinante esse papel. Mas foi também, num prazo mais longo e calmo, o principal progenitor do “Islão Político” que hoje conhecemos, graças à criação dos Irmãos Muçulmanos, e que inclui – quer na sua base teórica, quer substancialmente no seu pessoal – a jihad global e a Al-Qaeda, que se converteriam nos seus descendentes pervertidos e fanáticos.
Mas em terceiro lugar, e com grande actualidade, foi também o primeiro e mais influente exemplo, passados quase sessenta anos, daquilo de que trata a revolução democrática árabe. Nasser procurava a «verdadeira democracia», que julgava ser a mais indicada aos objectivos da sua revolução. Mas, apesar de todos os seus adornos democráticos, a sua foi, desde o seu início e na realidade, uma autocracia dirigida pelos militares, ainda que populista; com os anos sofreu enormes mudanças na ideologia, política e reputação, mas retendo sempre as suas estruturas básicas degenerou, a um ritmo constante, na versão bastarda, artrítica, profundamente opressiva e corrupta do seu eu original presidida por Hosni Mubarak. Com variantes locais, o sistema repetia-se na maior parte das autocracias árabes, especialmente naquelas anteriormente revolucionárias como a sua, mas também nas monarquias tradicionais mais antigas.
E efectivamente, a «rua» do Egipto agitou-se com prontidão e de maneira nada semelhante à forma selvagem e violenta que as mentes preocupadas tendem sempre a imaginar. Como expressão ampla e manifestamente autêntica da vontade popular, cumpriu uma primeira etapa crucial daquilo que figura certamente como um dos levantamentos mais exemplares e civilizados da História. Os egípcios sentem-se renascidos, o mundo árabe tem novamente o Egipto, «mãe do mundo», na mais alta estima. E finalmente – depois de muitas e habilidosas evasivas enquanto esperavam para ver se o faraó, durante trinta anos pilar máximo do seu Médio Oriente, efectivamente caía – o presidente Obama e outros prestaram-lhes o tributo oficial do Ocidente.
Estes aplausos suscitam a grande pergunta: se os árabes se reincorporarem agora no mundo, o que significa para o mundo essa reincorporação? A adopção de um valor fundamentalmente ocidental torná-los-á naturalmente receptivos às políticas ou recomendações ocidentais? Provavelmente não. A própria democracia, não falando já do ressentimento árabe para com o Ocidente devido ao prolongado historial de apoio à velha ordem despótica, terá uma influência contrária.
Falando em termos práticos, a «terceira via» dos árabes significa apenas que a democracia, um conceito político neutro em si próprio, servirá a partir de agora de entrada para a condução da sua política. Não significa ultrapassar as primeiras duas vias. Porque as políticas destas duas não podem deixar de persistir na terceira. O islamismo, grande pesadelo do Ocidente, continuará aí. Uma ordem democrática achará impossível, por si mesmo ou em nome de outros, fazer o que Nasser fez na ordem despótica: executar alguns dirigentes dos Irmãos Muçulmanos e reprimir severamente os seus partidários. Está destinada a dar-lhes lugar, aceitando aberta e eleitoralmente o seu verdadeiro peso nos assuntos árabes, tal como a outros movimentos que rivalizem com eles.
O nacionalismo, noutra época outro grande pesadelo do Ocidente, será um deles e, muito provavelmente, dado o papel não muito glorioso dos Irmãos Muçulmanos na rebelião, ganhará algum terreno que começou a perder seriamente face aos islamistas após a demolidora derrota árabe de 1967.
Um elemento-chave, possivelmente o elemento-chave das estratégias norte-americanas no Médio Oriente, bastante destrutivas, centrou-se sempre no conflito israelo-árabe. Com o islamismo e o nacionalismo a disporem de liberdade de expressão, para não mencionar outras forças políticas, a democracia egípcia não deverá querer, não deverá continuar a desempenhar o papel – absolutamente servil, se não francamente traidor para muitos olhos árabes – que Mubarak levou a cabo em nome dos EUA e de Israel. Fica ainda por saber que importância terá este desencontro específico entre egípcios e norte-americanos. Mas a maior parte dos israelitas consideram-no já uma calamidade em formação, com a consequência irónica de Israel ser “a única democracia do Médio Oriente” a encabeçar, à sua maneira, aqueles que proclamam que nunca deveria haver democracia para os árabes.
Mas isto é olhar para o futuro. Para já a questão candente é saber onde surgirá a próxima revolução árabe. Embora a Europa de 1989 seja o precedente mais óbvio, é possível que reis e presidentes não caiam como o dominó que acabou com Honecker e Ceausescu. E depois de Ben Ali e de Mubarak, pode ser que outros não caiam de uma forma tão bonita ou tão fácil. Isso é já patente nos dois últimos episódios, os mais dramáticos, desta incessante turbulência pró-democrática que já agita meia dúzia de países árabes. A monarquia do Bahrein, com duzentos anos de vida, pode ter recuado, numa tentativa de diálogo e reconciliação. Mas este regime de maioria sunita, bastante coeso, já demonstrou ser capaz de tenacidade e dureza face a um levantamento da sua maioria xiita. No que diz respeito à Líbia, não há muitas dúvidas de que, face a um levantamento da oposição, o coronel Khadafi, o mais cruel e caprichoso dos ditadores árabes, tentará fazer em grande o que sempre disse que faria a qualquer opositor do seu Grande Estado das Massas Árabe Líbio Socialista do Povo (que dura há 42 anos): «cortá-los em pedaços».
Mas a maior parte destes regimes são candidatos a levantamentos populares. Entre as poucas excepções prováveis, talvez a mais importante, e evidentemente a mais apta, seja o Líbano, a que agora regressei. Sempre turbulento, sempre o mais exposto dos árabes às consequências do que fazem outros árabes, poderia parecer estar destinado a ser o primeiro a desaparecer. Mas não é o caso, sobretudo porque, exemplo único na região, sempre foi uma espécie de democracia.
27/02/11
David Hirst foi um dos grandes correspondentes britânicos e europeus no Médio Oriente, ao estilo de Robert Fisk para The Independent de Londres ou Tomás Alcoverro para La Vanguardia de Barcelona. Reformado na actualidade, trabalhou na região para The Guardian, entre 1963 e 1997. É autor de vários livros sobre o mundo árabe, como The Gun and the Olive Branch e Beware of Small States: Lebanon, Battleground of the Middle East.
Tradução de Helena Pitta para o Esquerda.net
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