A Eficiência Energética: simples no conceito e complexa na aplicação

20 de setembro 2007 - 0:00
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O recente Livro Verde da Eificiência Energética da Comissão aponta para um potencial 20% de redução das necessidades - ou dos consumos - até 2020. Aqui está o caminho. Um caminho que abafa os delírios dos ‘vendedores de energia', em geral, navegadores de grandes naus. Claro que se dirá que aquele objectivo não se adequa à situação de Portugal. Aqui, a ‘vox populi' é a de que ainda não somos suficientemente desenvolvidos e que por isso os nossos consumos deverão crescer em correspondência com a necessidade do crescimento económico.



Artigo de Eduardo de Oliveira Fernandes  



Energia é, etimologicamente, a capacidade de mobilizar uma força. Daí, energia ser fonte de vida e ser causa de acção e de movimento e, por isso, poder ser condição de progresso, de crescimento de riqueza e de bem estar.



Mas, a energia é também e só ambiente: fóssil ou renovável, a energia vem do ambiente e - num paralelo com a ‘condenação' bíblica - ao ambiente há-de tornar. Isto, num regresso sem custo, como é, por exemplo, o caso do ´resíduo' da luz do sol que entra pela vidraça ou, muito oneroso, como é o caso dos efluentes da combustão. Aqui, a situação é particularmente séria, não já pelos gases do nível da meso-escala (SO2, NOx,...) mas, pelo gás da escala global (ozono, CO2).



A energia não se consome mas transforma-se. ‘Consome-se' a energia a um certo nível de qualidade quando é usada, isto é, convertida, dando origem a uma ou mais ‘variedades' de energia de qualidade inferior. É o caso da electricidade que acciona um motor ou do combustível que se queima numa caldeira. Em geral, por fatalidade termodinâmica, o calor aparece como a variedade mais votada a ser essa energia de perdas: na central térmica com os gases libertos para atmosfera; nos efluentes líquidos e gasosos, com ou sem vapor de água, dos processos industriais; na ‘regulação' do sobre-aquecimento da enfermaria do hospital com a abertura das janelas, etc. etc. A percepção desta realidade deve estimular a engenharia e a organização das actividades para evitar ou reduzir o impacte dessas perdas. E a tecnologia deve responder e responde.



É por isso que é possível ter em centrais de ciclo combinado mais 30 a 50 % de rendimento para a mesma energia do combustível queimado do que numa central térmica convencional: ter sistemas de recuperação de calor do ar quente de exaustão para o ar aquecido necessário ao processo; ter edifícios com uma solução ‘por medida' para cada espaço e a cada estação; antecipar eficiências por melhoria tecnológicas em frigoríficos, em lâmpadas e em outros equipamentos de até 50 ou 70%.



Mas a energia que se perde por entre os dedos das sociedades do desperdício não é só essa do ‘fim de linha' mas é também aquela que se usa sem que seja, de facto, necessária. Esta afirmação, é já bem entendida por todos quando nos referimos à água. Ninguém responsável advogaria meios de aumentar desnecessariamente os usos - também aqui, a água não se consome - de água potável. Mas, o curioso é que esta cultura não chegou ainda á energia. Com isto não se defendem restrições ou atitudes de austeridade seja de que tipo for. Note-se que, embora tal se torne necessário quanto à água com alguma frequência, isso seria menos aceitável no que concrene à energia.



O que parece impor-se é uma racionalidade que não se afigura fácil encontrar na gestão dos recursos energéticos. Que a população que vive/trabalha no Parque das Nações apresenta metade da capitação energética do resto de Lisboa, não se detecta pela observação do comportamento austero ou exótico daquela parte da população. Ao contrário, é uma zona de grande exuberância social e económica. Foi a concepção dos sistemas, foi o processo fundador de planeamento urbano, do projecto dos edifícios mais marcantes e do licenciamento, etc. que induziu essa ‘ordem energética'. Uma ordem que muitos dos sucessivos responsáveis daquela área nunca valorizaram porque nunca perceberam. É caso para dizer que também aqui há lugar a falar de falta de cultura. A cultura ambiental, holística, que envolve a gestão racional, sustentável(?), de todos os recursos e que é pressuposto da atitude pró eficiência. Note-se que eficiência não é poupança, restrição ou austeridade mas é um exercício de saciedade, de racionalidade tecnológica, de responsabilidade social. Não entendemos, apesar de tudo, já bastante bem o que é a responsabilidade social em relação ao ambiente? Pois bem, incluamos a energia porque energia é ambiente.



Neste contexto falar de eficiência energética não é coisa menor. O recente Livro Verde da Eificiência Energética da Comissão aponta para um potencial 20% de redução das necessidades - ou dos consumos - até 2020. Aqui está o caminho. Um caminho que abafa os delírios dos ‘vendedores de energia', em geral, navegadores de grandes naus. Claro que se dirá que aquele objectivo não se adequa à situação de Portugal. Aqui, a ‘vox populi' é a de que ainda não somos suficientemente desenvolvidos e que por isso os nossos consumos deverão crescer em correspondência com a necessidade do crescimento económico. Não seremos nós a dizer que os consumos não deverão crescer mas, o objectivo da eficiência, se adoptado e assumido politicamente, deverá permitir que as taxas de crescimento da energia não sejam tão altas e que a intensidade energética do produto interno bruto possa diminuir criando o espaço a que medidas de racionalização combatam o desenvolvimento de usos ociosos e compensem os crescimentos economica e socialmente justificados.



O que se espera é uma política de rigor, definida com visão. A política da energia em Portugal tem andado em bolandas sem merecer a devida consideração pelos poderes, sem visão e mesmo sem sentido da responsabilidade. Sobram os exemplos. Muitos encaram o mercado da energia como um mercado de bens quando, no fundo é um mercado de serviços. Entendem-no bem aqueles que tendo responsabilidade em empresas de distribuição, promovem a eficiência dos usos da energia final numa lógica de que o importante não é vender mais mas é de fidelizar o cliente e assegurar o serviço mais eficiente.



Não estão em causa as tecnologias, nem a informação, nem sequer a formação dos agentes especializados mas sim os objectivos políticos, de desenvolvimento sustentável, de qualidade de vida e de excelência do quadro de vida. E, em consequência, estão em causa os instrumentos duma política para o recurso energia, nomeadamente, entre outros, instrumentos da fiscalidade da energia e dos seus sinais para a competitividade da economia mas, também, para a sustentabilidade ‘at large' da sociedade portuguesa; da coerência da gestão interdepartamental da relação energia-ambiente, ambiente natural e ambiente urbano; da responsabilidade da Administração enquanto responsável por uma fatia significativa da ‘procura' energética.



Se um tal quadro político existir e se os orgãos gestores forem competentes e estáveis e se metas forem definidas, não se vê a razão porque a eficiência não possa ser um vector significativo do aprovisionamento energético do futuro. E isto, com benefício para o tecido económico e social, nomeadamente, através de mais emprego qualificado e da inovação e da tecnologia difusas, como é próprio das sociedades desenvolvidas.



A eficiência energética é uma das características do novo paradigma energético tipificado pela importância da gestão da procura, a par da tradicional gestão da oferta, pela liberalização e pela descentralização. Se algumas destas variáveis, digamos assim, actua mais directamente pelo lado do mercado, outras têm uma marca de racionalidade técnica e tecnológica. É isso que levará, por exemplo, à identificação dos edifícios, para além de ‘utilizadores', vulgo ‘consumidores', de energia, como entes marcantes no futuro enquanto ‘produtores' de energia eléctrica (via paineis fotovoltaicos) ou de água quente sanitária (via colectores solares térmicos).



Simples no conceito, a eficiência energética exprime-se por indicadores simples do tipo rendimento ou intensidade energética e traduz-se numa racionalidade assente no estado da arte da tecnologia, na qualidade da organização e da gestão. É, no entanto, extremamente complexa na aplicação porque envolve a comunidade a todos os níveis. Por isso, a importância da política na eficiência energética.



A eficiência energética constitui um desafio permanente aos que acreditam no futuro e no trabalho sério e consistente na construção desse futuro e rejeitam a visão ‘gadgética' da tecnologia ‘chave na mão', dos comerciantes oportunistas e dos que acordando tarde estão dispostos a pagar caro porque não tiveram tempo até aqui para pensar e se organizarem.



A eficiência energética a par da promoção das energias renováveis é uma tarefa do futuro, da inteligência, da boa gestão dos recursos e da sustentabilidade. Mas sendo do futuro, deverá começar já, do lado da oferta e, sobretudo, do lado da procura envolvendo todos os utilizadores de energia até aos simples cidadãos. A urgência do futuro, por um lado, e a complexidade da gestão da procura, por outro lado, fazem da eficiência energética e das energias renováveis dois vectores prioritários da intervenção política transversais, globais e complementares para a construção do novo paradigma energético que já se antevê no horizonte.



Eduardo de Oliveira Fernandes



Professor Catedrático da FEUP

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