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"Dividatonação": como morre a globalização

Um simples dia, 9 de Agosto de 2007, vai ficar na história como o "dia da dividatonação 1" - o princípio do fim da desregulação e privatização das finanças que eram as marcas da globalização.
Este é um momento que eu (juntamente com muitos outros) previa desde há muito, nomeadamente num artigo escrito em 2003 para a openDemocracy 2. O problema, tal como com Cassandra noutras áreas da vida, era determinar o momento preciso em que se desencadearia a crise financeira global que sabíamos que se estava a aproximar.

Artigo de Ann Pettifor 3 publicado em www.opendemocracy.net a 15 de Agosto de 2007.

Uma evidência vital surgiu em Junho de 2007, quando se soube que o Grupo LP Blackstone - sediado em Nova York e que constitui o maior fundo de capitais privados do mundo - decidiu abrir-se ao público. Por outras palavras, os seus donos privados resolveram (para espanto de muitos) tornar algumas actividades transparentes, e ofereceram a empresa (tanto os activos como os passivos) a accionistas. Muitos atribuíram a esta atitude da empresa motivos de caridade - nomeadamente o desejo de garantir que tanto os cidadãos comuns como os mais abastados pudessem partilhar da riqueza da Blackstone (poucas menções foram feitas às suas perdas).

Foi nessa altura que o momento da "dividatonação" pareceu iminente. Demorou apenas mais dois meses.

Os problemas revelados pelo "dia da dividatonação" levaram a uma "crise do sistema" que atingiu directamente o coração do modelo financeiro que sustenta esse conceito económico efémero que é a "globalização" 4. Foi a desregulação do sector financeiro que enfraqueceu o poder e a eficácia dos governos, e que forçou o capital aberto e os mercados financeiros. Foi ainda a desregulação do sector financeiro que obrigou o preço do trabalho a baixar, exigindo retornos excessivos tanto do trabalho como do ecossistema, e adicionalmente beneficiou os já muito ricos, especialmente os gestores e investidores de capitais privados e de fundos de investimento. E foi também a a desregulação do sector financeiro que afogou o mundo na dívida, e que agora precipitou uma crise dos mercados à escala mundial.

A verdade amarga do grande falhanço do mercado a 9 de Agosto de 2007, é que quando o sector financeiro sofreu um colapso teve de contar com o Estado - nomeadamente com os Bancos Centrais dos EUA, da Europa e do Japão - para que este interviesse no sentido de restabelecer uma sensação de estabilidade. No mundo real, cidadãos e "pagadores de impostos" são mais uma vez obrigados a arcar com a responsabilidade, pagando os custos causados pela irreflectida e descarada ganância do mundo da alta finança.

A própria Blackstone reforçou esta mensagem numa muito reveladora declaração feita a 13 de Agosto. A companhia anunciou um recorde de lucros para 2006-07 - embora (como nota Bloomberg) relatasse "uma perda de 52,3 milhões de dólares, ou 20 cêntimos por acção, de 19 de Junho a 30 de Junho, os únicos dias em que esteve estruturada como uma companhia aberta ao público (o itálico é meu).

A cegueira da ortodoxia

O resultado desta "dividatonação" do mercado financeiro é uma depressão mundial longa, dolorosa e sem margem de manobra.

As instituições mais susceptíveis aos toques de sirene do sector financeiro estão em perigo iminente. Falamos de bancos que arriscaram ao conceder empréstimos de forma leviana (de 400 mil milhões de dólares para cima) para financiarem enormes operações especulativas de aquisição e fusão. Esperavam "passar a bola" das dívidas, reenviando-as para outros investidores - mas de repente não há ninguém que as assuma. Os próximos na cadeia da vulnerabilidade são as empresas - do Manchester United ao Boots - que sobrecarregaram com dívidas os seus accionistas, empregados e clientes.

Mas quem mais vai sofrer com esta "dividatonação" não são os fiadores e responsáveis principais destas instituições - os gestores dos fundos de investimento ou os detentores de capital privado - mas sim os cidadãos comuns. Muitos deles terão sido persuadidos a emprestar muito para além das suas capacidades monetárias, e por isso vão perder as suas pensões, as suas casas, os seus empregos e meios de subsistência - e as suas esperanças no futuro. Ao fazerem isso, acabaram por ser o sustento da economia durante as últimas duas décadas - e serão ainda eles, e não os "guardiões das finanças nacionais" (bancos centrais, ministros das finanças e reguladores) a verem-se forçados a arcar com as culpas da crise.

Os reguladores e os bancos centrais estão agora a aperceber-se das repercussões totais do colapso financeiro pendente, e, dominados pelo pânico, reverteram as suas políticas anti-inflacionárias, e em vez delas, bombearam liquidez num sistema financeiro congelado pelo medo e falta de confiança que agora existe entre os bancos. No dia 13 de Agosto, o banco central europeu procedeu à sua terceira injecção consecutiva de moeda na rede europeia de bancos, aumentando para quase 280 mil milhões de dólares o total do seu apoio aos bancos da zona euro. Valores da mesma ordem de grandeza foram igualmente fornecidos a instituições financeiras nos EUA e no Japão.

Por que motivo os bancos centrais, ideologicamente comprometidos com o papel da "mão invisível" nos mercados financeiros, agiram desta forma? Precisamente porque os bancos comerciais deixaram de confiar na viabilidade financeira dos outros bancos (por outras palavras, na possibilidade dos outros bancos pagarem as suas dívidas), e por isso, a 9 de Agosto, entraram efectivamente em greve. Ou seja, deixaram de emprestar dinheiro uns aos outros, obrigando os bancos centrais a garantirem empréstimos aos bancos que necessitavam. O facto de os bancos centrais continuarem a fazer isso hoje, indicia que os reguladores se encontram numa posição delicada: perderam a fé na "mão invisível", mas ainda não conseguiram resolver o problema da solvência. Em consequência, o medo continua a invadir os mercados, e o dinheiro fácil continua a passar de mão em mão como se o dia de amanhã não existisse.

Mas enquanto os bancos centrais já não estão "a dormir ao volante", outros continuam em profunda contradição. Especuladores bolsistas, políticos e economistas - incluindo o Fundo Monetário Internacional (FMI) - continuam a fiar-se em defeituosas e tendenciosas análises económicas.

A 10 de Agosto, o FMI emitiu um comunicado, dizendo: "Continuamos a acreditar que será possível lidar com as consequências imediatas da reavaliação do crédito de risco. Os fundamentos que suportam o forte crescimento global continuam inalterados".

Para os economistas do FMI, tal como para todos os outros comprometidos com a ortodoxia dominante, o sector financeiro aparece numa espécie de "ângulo morto". Os economistas conduzem a sua análise sem referências à criação de crédito e de dívida, concentrando-se apenas nos bens e serviços, na oferta e na procura. Vêem o dinheiro como um instrumento neutro e na globalidade ignoram o papel do crédito. Tal como escreveu Joseph Schumpeter, os economistas tratam o "fenómeno da vida económica... em termos de bens e serviços, de decisões sobre esses factores, e das relações entre eles. O dinheiro entra na história, apenas com a modesta função de engenho técnico que foi adoptado para facilitar as transacções". Por isso, o modelo que o Banco de Inglaterra tem da economia do Reino Unido não inclui os componentes da dívida. Na verdade, é reconhecido que existem, muito frequentemente, "desordens" monetárias - mas o dinheiro é "de uma importância secundária na explicação da evolução económica da realidade".

Estas considerações explicam a cegueira da ortodoxia económica e a sua continuada indiferença perante a criação das actuais bolhas de crédito/dívida gigantescas. E também explica por que motivo o FMI acredita que "os fundamentos económicos subjacentes" têm pouco que ver com o colapso da confiança financeira sobrecarregada pela dívida, pelo risco excessivo, pela especulação e pela venda de acções que acabaram de subir. O discurso de 31 de Julho de 2007 feito pelo director do FMI, John Lipsky, foi marcante a este respeito:

"Os suportes fundamentais da actual expansão global parecem ser razoavelmente sólidos. Se assim for, os actuais esforços do mercado muito provavelmente ajudarão a dar o passo necessário para os ajustamentos financeiros fundamentais. Isto, por sua vez, vai ajudar a dar o salto para uma nova fase da expansão global".

Por outras palavras, o falhanço do sistema financeiro privatizado, a ameaça de colapso dos bancos, a bancarrota das companhias de empréstimos, o colapso dos negócios de capitais privados, a sobrecarga das impagáveis dívidas das empresas, os efeitos sistemáticos da crise dos empréstimos de alto risco, a penhora das casas privadas - todos estes "ajustamentos" não ameaçam os "fundamentos subjacentes" e ainda por cima dão o "salto para uma nova fase da expansão global".

Isto é pura ilusão, um profundo falhanço da análise económica pelos economistas do sistema e por aqueles que são pagos para actuar como guardiões das respectivas finanças nacionais.

Uma política para a economia

Onde estão os políticos no meio de tudo isto, perante uma crise que afecta a vida de milhões de pessoas que são igualmente cidadãos democráticos e eleitores?

Aqueles que no Reino Unido que apoiaram Londres no seu papel de centro financeiro, e que vigiaram e apoiaram a desregulação do sector financeiro, parecem ter ficado repentinamente sem língua. Na altura em que escrevo, o Primeiro Ministro Gordon Brown (e já agora, ex-Ministro das Finanças) ainda não disse uma palavra, nem sequer o actual Ministro das Finanças Alistair Darling, ou mesmo o Presidente da Câmara de Londres Ken Livingstone. De qualquer modo, mesmo que a preocupação com os mercados financeiros tenha baixado repentinamente os preços das acções em todo o mundo, no dia 9 de Agosto, o Presidente Bush comentou o assunto, a partir da Casa Branca.

Bush afirmou que a economia dos EUA "continua a fazer inveja ao resto do Mundo, gozando de um desemprego baixo e de uma inflação também baixa... Disseram-me que existe liquidez suficiente no sistema para permitir aos mercados corrigirem-se". Tal como a declaração orquestrada do FMI, estas notas destinavam-se a restaurar a confiança. Fizeram lembrar as tentativas de dissimulação do crash de 1929, quando o presidente republicano Herbert Hoover - foi encorajado a não referir-se ao "pânico" financeiro dado que isso induziria ainda mais pânico. E assim a palavra "depressão" foi inventada para descrever o colapso da economia (os spin doctors (assessores de comunicação) encontraram, nos tempos que correm, uma expressão ainda mais evasiva: "crescente recessão")

A 29 de Outubro de 1929, o dia em que os preços das acções atingiram o seu valor mais baixo e em que 30 mil milhões de dólares desapareceram da economia americana, o já idoso JD Rockefeller foi encorajado (sem dúvida por algum relações-públicas impaciente) a fazer a seguinte declaração:

"Estes são dias de desmotivação. Nos meus 93 anos de vida, as depressões vieram e foram-se embora. A prosperidade voltou sempre e vai voltar outra vez"

Depois de 20 anos economicamente destrutivos e de uma guerra mundial, a prosperidade começou a voltar. Mas apenas porque os governos aprenderam, graças a John Maynard Keynes, que o sector financeiro tinha que ser humilde, e retornar à sua função de criado da economia mundial, em vez de mestre. Os governos tiveram que recuperar os poderes necessários ao controle dos fluxos de capitais e da criação de créditos - poderes que o sector financeiro havia tão levianamente desprezado nos anos 20. Uma geração depois de terem aprendido, abandonaram deliberadamente essas lições: depois do presidente Richard Nixon ter precipitado o colapso de Bretton Woods em 1971, os governos inspirados pela ideologia do mercado livre abstiveram-se de tomar o controlo e de regular o sector financeiro. Uma série de líderes mundiais recusou-se a intervir, ou a coordenarem-se durante as cimeiras dos G8, para restaurar o equilíbrio de uma economia global a sofrer da criação excessiva de crédito, de inflação dos activos e de desequilíbrios financeiros.

Agora, depois do "dia da dividatonação", as lições de Keynes terão que ser relidas se se quiser devolver estabilidade e prosperidade sustentável à economia global. A prolongada crise financeira que se desenha garante um processo doloroso.

1 "Dividatonação" tradução adaptada literalmente do neologismo "debtonation" (nome de um programa de computador para cálculo de dívidas pessoais) usado por Ann Pettifor, e composto a partir das palavras "debt" (dívida) e "detonation" (detonação), com o sentido de "explosão da dívida".

2 openDemocracy é uma associação britânica de educação sem fins lucrativos e também um site http://www.opendemocracy.net/ sobre relações internacionais. Ver "The coming first world debt crisis" [1 September 2003], e o meu livro com o mesmo título [Palgrave, 2006]

3 Ann Pettifor é directora executiva da ONG britânica de apoio ao desenvolvimento Advocacy International http://www.advocacyinternational.co.uk/ . Nos anos 90 ajudou a conceber e liderou a campanha internacional Jubileu 2000. É autora de "The Real World Economic Outlook",
The Coming First World Debt Crisis é publicado por Palgrave em Outubro de 2006). O seu blogue é http://annpettifor.blogspot.com/

4 Ver Tony Curzon Price, "The end of gentlemanly capitalism", 13 de Agosto de 2007

(...)

Neste dossier:

Dossier Crise Financeira

Numa medida inédita nos últimos 30 anos o Banco central da Inglaterra teve de conceder um empréstimo de emergência ao Northern Rock, o oitavo banco da Grã-Bretanha, na passada Sexta-feira. A crise de liquidez do banco britânico veio alertar para a grave crise financeira actual, que teve origem no mercado hipotecário dos Estados Unidos. As filas de pessoas tentando levantar as suas poupanças trazem à lembrança cenas de outras crises.

Vídeo: Michael Moore e Rage Against The Machine

Michael Moore filma um vídeo dos "Rage Against The Machine" e impõe um horário de funcionamento mais curto a "Wall Street" (retirado do blogue ladroesdebicicletas.blogspot.com)

Esmagar o Capitalismo, por Barbara Ehrenreich

Algures nos Hamptons um membro da alta sociedade insulta a empregada de limpeza e ergue os punhos para os jardineiros. Os americanos pobres, geralmente cautelosos o suficiente para se manterem invisíveis para a classe multimilionária, saltaram de repente para o centro da acção e começaram a esmagar o sistema financeiro global. Por incrível que pareça, este pode ser o primeiro caso na história em que os explorados conseguem deitar abaixo um sistema económico injusto, sem passarem pela trabalheira de uma revolução.

A recente perturbação dos mercados: uma incerteza impossível de calcular

Os economistas distinguem "risco" de "incerteza". Ao primeiro pode ser dado um preço pelos mercados financeiros enquanto à segunda não. A distinção entre estes dois conceitos foi feita pelo famoso economista Frank H. Knight na sua obra crucial: "Risco, Incerteza, e Lucro". Resumindo, "existe Risco quando os acontecimentos futuros ocorrem com uma probabilidade mensurável", enquanto "a Incerteza existe quando a probabilidade dos eventos futuros é indefinida ou incalculável".

Da "Private Equity" ao racionamento do crédito

Já tinha referido [no blogue ladroesdebicicletas] o negócio que envolve a compra da Chrysler por um fundo "Private Equity", o Cerebus. Este tipo de negócios são feitos, na sua quase integralidade, com recurso ao crédito. Normalmente, titularizados pelos bancos envolvidos. Ou seja, eu, enquanto pequeno investidor, posso comprar títulos do crédito que a Cerebus irá utilizar na compra da Chrysler. Os bancos conseguem, assim, financiar a operação sem inscrever o crédito no seu balanço.

A crise?

A liberalização dos mercados financeiros, realizada a partir dos anos oitenta, aumentou a fragilidade financeira do capitalismo. Isto até é hoje aceite por um número crescente de economistas devido à multiplicação de crises bancárias, cambiais ou nos mercados accionistas, com impactos profundos nas economias de muitos países. Os EUA, ao contrário de tantos países, têm conseguido mitigar os efeitos destas crises devido à disponibilidade e possibilidade que a Reserva Federal tem para injectar liquidez no sistema de forma a evitar danos mais graves. Foi o que fez mais uma vez (e agora também o BCE), esquecendo temporariamente e como convém as suas fidelidades liberais, agora que uma crise financeira se desenha no horizonte (desta vez no mercado de crédito imobiliário).

"Dividatonação": como morre a globalização

Um simples dia, 9 de Agosto de 2007, vai ficar na história como o "dia da dividatonação 1" - o princípio do fim da desregulação e privatização das finanças que eram as marcas da globalização.
Este é um momento que eu (juntamente com muitos outros) previa desde há muito, nomeadamente num artigo escrito em 2003 para a openDemocracy 2. O problema, tal como com Cassandra noutras áreas da vida, era determinar o momento preciso em que se desencadearia a crise financeira global que sabíamos que se estava a aproximar.

Dez ideias para entender a crise financeira

Tenho a impressão de que a maioria dos cidadãos se sente confusa, perante a crise que se desencadeou nas últimas semanas. Face ao esforço financeiro desenvolvido pelos bancos centrais, devem intuir que se trata de uma crise muito séria. E tendo em conta que sentem nos bolsos a subida das taxas de juro, podem perceber que ela vai atingi-los, mais do que as autoridades querem reconhecer.
Em qualquer caso, apesar de toda a gente falar da crise, há muito poucas ideias claras que permitam ao cidadão comum saber, com toda a certeza, o que se está a passar.

Algumas verdades sobre a crise financeira

Nos Estados Unidos, a desresponsabilização do Estado nas instituições federais de crédito é em grande parte responsável pela recente crise financeira, explica o economista francês Gérard Duménil, em entrevista à revista Politis de 30 de Agosto de 2007.