Como os músicos russos estão a tomar posição contra a guerra

Os criadores culturais foram protagonistas de protestos de vários tipos contra a invasão da Ucrânia. Alguns saíram do país. Para os que permaneceram coloca-se a questão: o espetáculo deve continuar num país em guerra? Por Marco Biasioli.

09 de abril 2022 - 18:22
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Rapper Oxxxymiron em concerto em 2017. Foto de Okras/Wikimedia Commons.
Rapper Oxxxymiron em concerto em 2017. Foto de Okras/Wikimedia Commons.

Quinze dias depois do início da invasão da Ucrânia, a partir de fora do país, o rapper russo Oxxxymiron divulgou uma mensagem de vídeo em que dizia que “...há dezenas de milhões de russos que discordam categoricamente desta guerra – e isto deveria ser dito tão alto quanto possível”. Oxxxymiron estava a anunciar uma série de espetáculos de beneficência contra a guerra sob o nome “Russos Contra a Guerra”, Russians against War (RAW). O primeiro concerto, realizado a 15 de março em Istambul, conseguiu angariar 30.000 dólares para os refugiados ucranianos. O segundo, no O2 Shepherd’s Bush Empire de Londres, a 24 de março, angariou 50.000 dólares.

Oxxxymiron é apenas um de entre muitos músicos russos que estão a usar as suas plataformas para fazer campanha contra a invasão russa da Ucrânia.

Sergey Khavro é outro. Khavro cria música synth-pop sonhadora sob o nome Parks, Squares and Alleys. Na sua página de Facebook escreveu:

“A 24 de fevereiro, Putin invadiu a Ucrânia e transformou esta auto-denominada “operação especial num genocídio de massas.

Foi a última gota que me obrigou a mim e à minha família a deixar imediatamente a Rússia e a começar uma nova vida na Georgia.

Não vou lançar nada novo até que esta guerra termine.

Todos os donativos que me cheguem através do Bandcamp e do Spotify irão para o centro de apoio social United Help Ukraine.”

Outros rappers influentes como Morgenshtern (que já tinha feito as malas em dezembro de 2021) e Face também abandonaram o país em protesto. O último afirmou que nunca mais conseguiria voltar à Rússia e pediu perdão ao povo ucraniano. Estes são apenas alguns exemplos dos muitos agentes culturais que saíram da Rússia no mês passado. Não sabem por quanto tempo: o estrangeiro é, por enquanto, um lugar a partir de onde podem expressar dissidência sem temer retaliações do Estado.

Ainda que a sua situação não seja comparável àquela que os seus colegas ucranianos estão a experienciar, os músicos soviéticos deparam-se com condições precárias que cada vez mais se parecem aos tempos do estalinismo. Mais uma vez, os artistas vistos como “inconvenientes” estão a ser relegados para o underground e a paisagem cultural independente da Rússia está a ser erodida.

Falta de esperança mistura-se com protesto

Dois anos de Covid-19 e agora a guerra com as suas sanções atingiram fortemente uma indústria da música que, nos últimos anos, tinha tentado desenvolver uma infraestrutura interna e construir pontes externas.

A movida excitante dos anos 2010, que modelou uma comunidade alternativa na Rússia e ofereceu uma versão diferente do país ao estrangeiro, parece uma memória ténue. “Perdemos tudo” escreve o jornalista especializado em música Nikolai Redkin e “aqueles que não saíram não têm força para criar nada”. A classe criativa russa, que durante anos tinha sido a mais vocal na contestação de Putin, poderá precisar de algum tempo para se reagrupar.

Uma mistura de falta de esperança e de protesto torna inapropriado continuar com atividades musicais e vários músicos cancelaram as suas digressões: esta não é altura para vos “distrair” e “entreter”, disse a estrela da música pop Monetochka aos seus fãs nas suas redes sociais.

Boris Grebenshchikov, líder da popular banda Akvarium, desmarcou todos os concertos até “melhores tempos”. Grebenshchikov, muitas vezes referido como Bob Dylan russo e que tinha sido colocado na lista negra por dissidência no tempo da URSS. Os Akvarium voltaram a ser banidos por dizerem que a guerra na Ucrânia é uma “loucura”.

Os Mumiy Troll, uma das bandas mais influentes de rock dos últimos 30 anos, decidiram fazer uma pausa de concertos indefinida: “a música morreu” disseram no Facebook.

Apesar das novas leis que implicam penas de prisão até 15 anos por se divulgar propaganda “falsa” anti-russa, os músicos tomaram posição contra a guerra de diferentes formas. Alguns utilizaram os seus canais nas redes sociais, outros juntaram-se às manifestações de rua. Muitos assinaram petições apelando a Putin para que pare com a guerra.

Ainda outros contestaram o que se está a passar através da sua arte. A estrela de rock Zemfira lançou um novo vídeo para a canção Ne strelyaite (Não disparem) e apagou tudo o resto que estava no seu canal. Ao fazê-lo, ela destaca deliberadamente imagens da destruição causada pela invasão russa da Ucrânia combinadas com a repressão das manifestações anti-guerra na Rússia. Agora, Zemfira também está fora do país.

O espetáculo tem de continuar. Mas como?

Mas uma questão continua para os músicos que ficaram na Rússia: se a música deve continuar, como o fazer? No clima atual, ter uma posição anti-guerra mas continuar normalmente com os espetáculos pode ser visto como hipocrisia. A popular banda de Petrogrado Shortparis, depois de lançar um vídeo que muitos interpretaram como uma declaração contra a guerra, anunciou a sua digressão de abril na Rússia.

“Olhamos para a nossa atividade com os concertos como uma oportunidade para a unidade de uma certa comunidade, o nascimento de sentimento de solidariedade e de apoio no seu interior”, declarou a banda. Mas o seu público ucraniano ficou escandalizado: “mostraram que são cobardes”, comentou um utilizador. “Venham tocar no teatro de Mariupol”, sugeriu outro.

Ainda assim, os músicos que decidiram continuar com as suas atividades alegam que as suas funções musicais são um abrigo emocional nos tempos sombrios e uma ferramenta para criar uma sensação alternativa de pertença. “A música é uma tábua de salvação que afasta as pessoas de problemas” disse a cantora Alyona Shvets, “é mais difícil sem a música do que com ela”.

Particularmente na cena independente, os músicos estão entre a espada e a parede. Apesar de muitos se oporem às decisões do seu governo, também precisam voltar às suas atividades musicais por razões económicas.

Os espetáculos ao vivo são a principal fonte de rendimento dos artistas no agora diminuto mercado russo. Sistemas de pagamento como o Mastercard, Visa e PayPal, distribuidoras como a CD Baby e serviços de streaming incluindo o Spotify e o Apple Music pararam as suas operações na Rússia, o que complica a monetarização a partir de (e o descarregar músicas para) plataformas de música para músicos russos. A Warner, a Universal e a Sony, as três maiores empresas da indústria discográfica, que controlam cerca de 70% do catálogo global de música, também cessaram ou limitaram as suas atividades na Rússia.

Para além disso, fazer digressões no estrangeiro passará a ser complicado agora que a indústria está isolada. Mais uma vez, como entre 1960 e 1980, a precariedade no trabalho musical deriva as suas ações e ideologia do Estado (e não do mercado).

No geral, os músicos e os trabalhadores da indústria musical sabem que algo se perdeu para sempre. Pensaram que poderiam eventualmente conseguir proteger a cena que a muito custo construíram no interior de um Estado cada vez mais autoritário. Mas isso não aconteceu. Até onde o Kremlin vai atrasar o relógio – seja 40 anos, seja 90 – ainda está por ver.


Marco Biasioli é investigador pós-doutorado na Universidade de Manchester. É especialista na interação entre a música popular russa, a política e a sociedade.

Texto publicado originalmente no The Conversation. Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.

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