Brasil: surpresas até ao fim na eleição presidencial

A atual presidente Dilma Rousseff vencerá o primeiro turno, mas ninguém sabe quem vai disputar com ela a segunda volta, a 26 de outubro: Marina Silva do PSB, ou Aécio Neves do PSDB. A candidatura de Marina pôs as eleições de cabeça para baixo, mas o furacão que criou pode ter acabado por engolir a própria candidata.

05 de outubro 2014 - 11:45
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Um trágico acidente transformou a campanha presidencial no Brasil, que se anunciava modorrenta e de resultado mais que previsível, numa das mais imprevistas desde que em 1989 Fernando Collor de Mello derrotou Lula na ponta final das eleições.

O acidente foi o que vitimou o candidato do PSB, Eduardo Campos, em 13 de agosto deste ano, e lançou para a ribalta Marina Silva, que o substituiu como candidata a presidente. Em poucos dias, toda a eleição foi virada de cabeça para baixo, e Marina subia nas sondagens ultrapassando Aécio Neves, do PSDB, que ocupava o 2º lugar, e ameaçando mesmo a presidente Dilma Rousseff, que até aquele momento parecia ter a reeleição garantida.

Então, a campanha realmente aqueceu. Marina Silva tornou-se o alvo prioritário da artilharia das outras candidaturas – o que seria mais que esperado – mas não soube responder à altura e, pelo contrário, mostrou uma faceta pusilânime que lhe minou a imagem. A “nova política”, que sedutoramente anunciara, demonstrou-se uma fórmula vazia diante do emaranhado de recuos, ziguezagues e compromissos em que a candidata se embrenhou.

A “nova política”, que Marina Silva sedutoramente anunciara, demonstrou-se uma fórmula vazia diante do emaranhado de recuos, ziguezagues e compromissos em que a candidata se embrenhou.

O resultado é que as eleições neste domingo têm um vencedor certo no primeiro turno, a atual presidente Dilma Rousseff , do PT, com 40% das intenções de voto nas últimas sondagens, e uma incógnita sobre quem ficará em segundo lugar: Marina Silva, do PSB, que aparece com 22% e numa dinâmica de queda, ou Aécio Neves, do PSDB, que na ponta final a ultrapassou e aparece com 24%. Quem ficar em segundo lugar, disputará em 26 de outubro um 2º turno com Dilma Rousseff, pois parece muito improvável que ela despache a eleição já neste domingo – para isso teria de obter uma votação superior à soma de todos os outros candidatos. Se o 2º turno for disputado com Aécio Neves, teremos um resultado mais previsível: o candidato do PSDB nunca apareceu nas sondagens com possibilidade de derrotar Dilma, ao contrário de Marina Silva, que surgiu em sucessivas sondagens como favorita para vencer uma segunda volta com Dilma.

Mas como explicar esta dupla reviravolta na campanha eleitoral? A resposta mais fácil é a dos “marqueteiros” – neologismo já incorporado no dicionário para designar os publicitários que dirigem as campanhas no Brasil –, que explicam tudo por esta ou aquela estratégia no debate X, no tempo de antena Y, no slogan Z. É fácil, tem algum fundamento, mas no fundo não serve para compreender as entranhas de um processo político muito mais profundo do que simples subterfúgios de retórica ou de imagem. Um processo que teve a sua explosão nas jornadas de junho de 2013.

Dois milhões nas ruas em 400 cidades

Recordemos então o que foram essas jornadas. Tudo começou no dia 6 de junho, com uma manifestação organizada pelo Movimento Passe Livre contra o aumento da tarifa dos ônibus (autocarros) em São Paulo. A repressão da polícia do governador Alckmin provocou uma onda de indignação que multiplicou o comparecimento aos protestos seguintes. O prefeito (presidente da câmara) de São Paulo, Fernando Haddad, do PT, uniu-se ao governador do PSDB na defesa dos aumentos das tarifas. Diante dos protestos, os dois principais partidos do regime deixavam de lado as suas tricas e uniam-se contra as reivindicações.

A partir de dia 17, pelo menos dois milhões de pessoas foram às ruas em quatro centenas de cidades do Brasil, com manifestações de grande radicalidade, algo pouco comum no Brasil. Só esta enorme pressão fez recuar os variados governos de Estados e municípios e levou à anulação dos aumentos dos preços dos transportes.

A tempestade amainou e o movimento das ruas não logrou transformar o protesto em organização. Dilma e o Partido dos Trabalhadores, cujo prestígio tinham desmoronado durante junho, conseguiram recuperá-lo em parte. Tudo estava bem quando acabava bem, pensaram.

Mas a memória de junho continuava bem viva. E por isso, pouco mais de um ano depois, “uma massa de aproximadamente 45 milhões de cidadãos formada por jovens entre 16 e 33 anos e mais escolarizada que a geração anterior, recebendo rendimento individual semelhante ao dos pais, desgarra-se da hegemonia lulista, avizinhando-se de Marina Silva”, analisou o sociólogo Ruy Braga. “Apesar de reconhecer certo progresso sócio-ocupacional na última década e meia, essa massa fartou-se do atual modelo. Nem Aécio Neves, nem Eduardo Campos lograram seduzi-la. Afinal, ambos são políticos tradicionais, ou seja, totalmente identificados com o sistema partidário criticado pelos jovens”.

Já a líder de um partido que se apresentava como uma “Rede” (o partido que Marina tentou, sem sucesso, legalizar), uma mulher que afirmava não ser “nem de esquerda, nem de direita”, cuja trajetória de vida aparecia ligada à preservação ambiental e que repetia o mote de uma “nova política”, não podia deixar de representar um forte apelo aos jovens de junho, aqueles que não conheciam outra coisa senão os governos do Partido dos Trabalhadores, e que identificavam – e com razão – este partido com o regime. “Marina Silva surfa confortavelmente na onda 'mudancista'. De quebra, ela absorveu parte do voto das classes médias tradicionais animadas com a possibilidade de derrotar Dilma Rousseff”, prossegue Ruy Braga.

Foi este o fenómeno que explicou a explosão das intenções de voto em Marina. Só que...

A verdadeira face de Marina

Só que a Marina Silva candidata mostrou ser muito diferente daquela mulher que começara a militar nas comunidades eclesiais de base (ligadas à igreja católica e à Teologia da Libertação), da sindicalista fundadora da Central Única dos Trabalhadores (CUT), da militante ecologista que reivindicava a trajetória do histórico líder Chico Mendes, assassinado por um pistoleiro pago pelos fazendeiros, e até da ministra do governo Lula que rompera com este pela esquerda. A atual Marina Silva candidata é pastora evangélica e muito conservadora, e – pior ainda – demonstrou uma estranha tendência para se contradizer e até desdizer.

A atual Marina Silva candidata é pastora evangélica e muito conservadora, e – pior ainda – demonstrou uma estranha tendência para se contradizer e até desdizer.

“Posta subitamente na situação de candidata a presidente com a morte de Eduardo Campos, num primeiro momento Marina ganhou o apoio de um setor progressista que rejeitava o PT e não queria o PSOL”, analisou o veterano jornalista Cid Benjamin, num post recente no Facebook. “Por outro lado, a sua origem humilde, que lembrava a do Lula, facilitava a sua penetração junto aos setores populares, no que era ajudada pela falta de carisma de Dilma”.

Mas esta imagem em breve ruíu por ação da própria candidata. “Para se tornar palatável a segmentos tucanos que desejava atrair, foi mudando, mudando, e se desfigurou. Posições progressistas que abraçava e que eram marcas suas foram abandonadas na tentativa de atrair os tucanos [o PSDB]”, prossegue o jornalista.

O primeiro sinal desta metamorfose foi a mudança de posição em relação o casamento de pessoas do mesmo sexo, que constava do seu programa de candidatura, cedendo à pressão de um pastor evangélico, Silas Malafaia, que lhe enviou um ultimato para mudar de posição através do twitter. Bastaram uns poucos twits do pastor para que a candidata divulgasse uma errata ao seu programa, dando o dito por não dito.

Depois, renegou a oposição aos transgénicos, que marcara a sua trajetória de ambientalista.

“Há uma lenda de que eu sou contra os transgénicos, mas isso não é verdade”, disse. Mas a “lenda”, de facto, era real: em 1997, Marina, então senadora, apresentara o projeto de Lei que decretava “a moratória no plantio, comércio e consumo de organismos geneticamente modificados e produtos derivados, em todo o território nacional”.

Marina Silva adotou como porta-vozes da sua política económica neoliberais que em nada se distinguiam dos do PSDB e defendeu a política mais neoliberal, como a independência do Banco Central.

Numa reunião com empresários de São Paulo, chegou a defender uma atualização das leis laborais “para a realidade do mercado atual”, afirmando que o atual regime dificulta as contratações. Diante da repercussão negativa dessa tomada de posição, tentou atabalhoadamente corrigir-se, no dia seguinte, afirmando que os direitos dos trabalhadores eram intocáveis e que as alterações eram para acabar com a informalidade de muitos trabalhadores.

O poço de contradições em que Marina se transformou foi habilmente aproveitado pelos adversários (como poderia ser diferente?).

“Foi a própria Marina que desconstruiu a sua imagem, mostrando-se muito pouco consistente”, aponta o jornalista Cid Benjamin. “Com isso, perdeu o charme que a sua trajetória lhe outorgava e esvaziou o seu mote principal, o de que vinha para fazer a 'nova política'”.

Com a mesma rapidez com que atraíra os eleitores, Marina Silva perdeu-os. Agora luta por segurar o 2º lugar para garantir o direito de disputar com Dilma Rousseff o segundo turno das eleições. Mas pode tê-lo perdido.

Dilma pode dormir descansada?

A atual presidente está garantida no segundo turno mas isso não quer dizer que tenha o prestígio intacto e seja imune a novas surpresas. O descontentamento que veio à tona em junho de 2013 permanece latente. Só que uma parcela de eleitores, apesar de descontente com os 12 anos de governo do Partido dos Trabalhadores, teme perder as pequenas reformas introduzidas, como o bolsa família ou o aumento do salário mínimo. Por outro lado, há uma parcela grande dos empresários do país que não querem mudanças e estão dispostos a apoiar um novo mandato de Dilma Rousseff.

No calor da campanha, dirigentes do Partido dos Trabalhadores apresentam os governos de Lula e de Dilma como de esquerda, combatidos sem quartel pela direita e pela burguesia, que tudo fez e fará para os derrubar. Na sua lógica, toda e qualquer manifestação de descontentamento em relação ao governo é identificada como manipulação da direita. Foi esta a interpretação mais ouvida para as mobilizações de junho de 2013. O movimento de contestação da Copa do Mundo foi acusado igualmente de manobra da direita e barbaramente reprimido.

As grandes empresas de construção civil, da indústria alimentar, os principais bancos fazem doações ao PT que representam mais do dobro do que doam ao PSDB.

Esta interpretação, porém, choca-se com um dado incontestável: o Partido dos Trabalhadores é o maior beneficiado das doações de empresas aos partidos políticos, permitidas pela legislação eleitoral brasileira. As grandes empresas de construção civil, da indústria alimentar, os principais bancos fazem doações ao PT que representam mais do dobro do que doam ao PSDB (veja artigo neste dossier). Nem poderia ser de outra forma. Um estudo recente de três investigadores da Universidade de Brasília veio repor a verdade sobre o mito de que a desigualdade diminuiu no Brasil dos governos presididos pelo PT.

Os investigadores desconfiaram dos dados colhidos pelo Pnad (Pesquisa Nacional por Amostragem Domiciliar), que davam base a essa afirmação. Porque essa pesquisa era eficaz para retratar quem tem rendimentos de trabalho ou rendimentos fixos, mas não para quem tem proventos de aplicações financeiras, por exemplo. Desta forma, os dados do Pnad concluíam sempre que havia redução da desigualdade, porque tinha aumentado o rendimento dos mais pobres, devido às diversas bolsas. Mas os investigadores refizeram os cálculos usando os dados do IRS. E descobriram que se era certo que o rendimento dos mais pobres aumentara, o dos ricos aumentara também – e não pouco. De facto, segundo o estudo, os 5% mais ricos detinham cerca de 40% do rendimento total do país em 2006 e passaram a ter 44% em 2012. O grupo dos 1% mais ricos detém 25% da riqueza do país (mais que nos EUA!) e os 0,1% mais ricos 11%.

Os ricos, por isso, não doam rios de dinheiro ao PT por causa de uma estranha vontade de suicídio, muito pelo contrário: doam porque foram muito bem tratados pelos seus governos.

Algo semelhante acontece com a pressão dos média sobre o governo. É comum ouvir dirigentes petistas vitimizarem-se por serem alvo dos ataques dos patrões da imprensa – e muitas vezes com razão. Mas não têm qualquer autoridade para criticar essa vitimização, porque os governos de Lula e de Dilma nada fizeram para atacar a concentração dos meios de comunicação social, que no Brasil é pior que nos Estados Unidos. Nada, nem uma medida. Mais: o PT nunca lançou um jornal, ou montou um canal de TV para disputar esse terreno. Não foi por falta de dinheiro nem de profissionais.

Medíocre papel de disputar cargos públicos”

João Pedro Stédile, líder do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), que continua a ser eleitor do PT, tem uma visão muito crítica do partido.

O PT abdicou do seu papel de organizador político e formador ideológico; resignou-se ao medíocre papel de disputar cargos públicos. Isso o esclerosou ideologicamente, diz Stédile

“O maior partido da esquerda, com toda sua influência nas massas e nas organizações populares, abdicou do seu papel de organizador político e formador ideológico; resignou-se ao medíocre papel de disputar cargos públicos. Isso o esclerosou ideologicamente”, disparou, numa entrevista à Carta Maior. E questionou: “Como é possível conceber um partido que tem 800 mil filiados, mas não tem cursos de formação política, não tem sequer um jornal nacional que oriente o debate e a militância?”

Stédile defende que o próximo mandato [de Dilma] precisa de introduzir mudanças estruturais, “que alterem a política económica e com ela o superávit primário e a matriz tributária. São requisitos para canalizar recursos necessários aos 10% do PIB na educação, à saúde, moradia, reforma agrária e aos pesados investimentos em transporte público de qualidade, que a população cobra. No campo político, é necessário convocar uma assembleia constituinte. É o único caminho para uma profunda reforma no sistema política. Queremos mudanças também na forma de conduzir a política agrícola e agrária”. E advertiu: “Se o governo Dilma não tiver forças para caminhar nessa direção teremos quatro anos de instabilidade política. O povo voltará as ruas”.

E a esquerda socialista?

Nestas eleições, a esquerda socialista – PSOL, PSTU e PCB – cumpre ainda um pequeno papel. Dividida em três candidaturas, unida em algumas frentes a nível dos Estados, prejudicada pelas leis eleitorais, que deixam de fora dos debates e com tempos de antena irrisórios os candidatos do PSTU e do PCB, a esquerda socialista terá um pequeno resultado. A candidata do PSOL, Luciana Genro, será a mais votada, tendo conseguido alguns bons desempenhos em debates televisivos entre os candidatos presidenciais. O desafio que esta esquerda enfrenta é conseguir ligar-se às novas jornadas de protesto que, mais tarde ou mais cedo, não deixarão de aparecer. Neste dossier, o Esquerda.net dá voz aos três candidatos, reproduzindo as entrevistas realizadas pelo Correio da Cidadania.

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