Alma Negra em Pele Branca?

07 de setembro 2007 - 0:00
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Texto de Bantu Steve Biko, assinado com o pseudónimo Frank Talk, escrito em Agosto de 1970 e incluído no livro de textos de Biko, I write what I like (Escrevo o que quero). Neste texto ele analisa e critica a posição dos liberais brancos.

A comunidade branca na África do Sul é basicamente homogénea. É um grupo de pessoas acomodadas, que desfrutam de uma posição privilegiada que não merecem, que têm consciência disso, e que por essa razão passam todo o tempo a tentar justificar porque são assim. Quando existem diferenças nas suas opiniões políticas, mesmo assim tentam justificar a sua posição privilegiada e a sua usurpação do poder.



Com a teoria de "liberdade em separado para as várias nações dentro do estado multinacional da África do Sul", os nacionalistas fizeram muito no sentido de dar à maioria branca da África do Sul uma espécie de fundamentação moral para o que ocorre. Todo mundo se satisfaz com a declaração de que "essa gente" - referindo-se aos negros - será libertada quando estiver pronta para dirigir os seus próprios negócios nas suas próprias áreas. O que mais poderiam querer?



Mas não é com "essa gente" que estamos preocupados. O nosso problema é aquele estranho grupo de não-conformistas que explicam a sua participação em termos negativos: aquele grupo de pessoas bem-intencionadas, que tem uma porção de nomes: liberais, esquerdistas, etc. São os que alegam não serem responsáveis pelo racismo dos brancos e pela "atitude desumana do país em relação ao negro". São as pessoas que declaram sentir a opressão com a mesma intensidade que os negros e que, por esse motivo, também deveriam se envolver na luta do negro por um lugar ao sol. Em resumo, são as pessoas que dizem que têm a alma negra, dentro de uma pele branca.



O papel do branco liberal na história do negro na África do Sul é bem curioso. A maioria das organizações negras estava sob a direcção de brancos. Fiéis à sua imagem, os brancos liberais sempre sabiam o que era bom para os negros e diziam isso a eles. O mais incrível é o facto de os negros terem acreditado neles durante tanto tempo. Foi só no fim da década de 50 que os negros começaram a exigir o direito de serem os seus próprios guardiães.



Sob nenhum aspecto a arrogância da ideologia liberal é mais evidente que na insistência em afirmar que os problemas do país só podem ser solucionados por uma abordagem bilateral, envolvendo tanto os negros quanto os brancos. De modo geral, tal posição é assumida com toda a seriedade como o modus operandi na África do Sul por todos aqueles que declaram que gostariam que houvesse uma mudança no status quo. Por esse motivo, vemos organizações e partidos políticos multirraciais e organizações estudantis "não raciais", todos insistindo na integração não só como um objectivo final, mas também como um meio.



A integração de que falam é, em primeiro lugar, artificial, antes de tudo por resultar mais de uma manobra consciente do que de uma orientação profunda da alma. Por outras palavras, as pessoas que formam o organismo integrado foram extraídas de várias sociedades segregadas, com os seus complexos de superioridade e de inferioridade imbuídos, complexos que continuam a se manifestar mesmo na estrutura "não racial" do organismo integrado. Portanto, a integração assim obtida é uma via única, na qual os brancos são os únicos a falar, cabendo aos negros escutar. Apresso-me a dizer que não estou a afirmar que a segregação é necessariamente a ordem natural; no entanto, uma vez que um grupo goza de privilégios à custa de outro, torna-se evidente que uma integração arranjada à pressa não pode ser a solução do problema. É o mesmo que esperar que o escravo trabalhe junto com o filho do seu dono para eliminar as condições que o levaram à escravidão.



Em segundo lugar, esse tipo de integração é um meio quase sempre improdutivo. Os participantes gastam muito tempo nas reuniões trocando insultos, tentando provar que A é mais liberal que B. Ou seja, a falta de uma base comum para uma identificação sólida manifesta-se permanentemente nas brigas internas do grupo.



A busca dos negros pela auto-afirmação, numa sociedade que os trata como eternas crianças menores de 16 anos, não deve parecer anacrónica a nenhuma pessoa verdadeiramente interessada numa integração real. Uma verdadeira integração não precisa de planeamento ou estímulo. Quando os vários grupos de uma comunidade se afirmam o suficiente para que haja respeito mútuo, temos então os pontos básicos para uma integração verdadeira e significativa. No coração da verdadeira integração encontram-se os elementos para que cada pessoa e cada grupo cresçam e atinjam a idade almejada. É preciso que cada grupo seja capaz de alcançar seu estilo de vida próprio, sem invadir ou ser frustrado por outro. Do respeito mútuo e da total liberdade de autodeterminação com certeza surgirá uma genuína fusão dos estilos de vida distintos. Essa é a verdadeira integração.



Portanto, enquanto os negros estiverem a sofrer de um complexo de inferioridade - consequência de trezentos anos de deliberada opressão, desprezo e escárnio -, são inúteis como construtores de uma sociedade normal na qual a pessoa não seja nada mais do que um ser humano para o seu próprio bem. Assim, como prelúdio ao que quer que possa vir em seguida, é necessário estabelecer nas bases uma consciência negra tão forte que os negros possam aprender a se autoafirmar e a reivindicar os seus justos direitos.



Desse modo, ao adoptar a linha de abordagem não racial, os liberais estão a fazer o seu velho jogo. Reivindicam o "monopólio da inteligência e do julgamento moral" e estabelecem o padrão e o ritmo para a realização das aspirações do negro. Eles querem continuar a gozar da simpatia tanto do mundo dos negros como dos brancos. Querem afastar-se de todo o tipo de "extremismo", condenando a "supremacia branca" por ser tão ruim quanto o "Poder Negro"!



Oscilam entre dois mundos, verbalizando com perfeição as reclamações dos negros, ao mesmo tempo que extraem o que lhes convém do conjunto de privilégios exclusivos dos brancos. Mas basta pedir que apresentem um programa concreto e significativo que pretendam adoptar, e veremos de que lado realmente estão. Os seus protestos são dirigidos à consciência do branco; tudo o que fazem destina-se a convencer o eleitorado branco de que o negro também é um ser humano e de que em algum momento, no futuro, deveria ser-lhe dado o acesso à mesa do branco.



O mito da integração proposta pela ideologia liberal precisa ser derrubado e morto, pois ele possibilita que se acredite que algo está a ser feito. Na realidade, porém, os círculos artificialmente integrados são um soporífero para os negros e fornecem uma certa satisfação para os brancos de consciência culpada. Tal mito baseia-se na falsa premissa de que, já que neste país é muito difícil reunir raças diferentes, então o simples facto de se conseguir essa reunião é, em si mesmo, um grande passo para a total libertação dos negros. Nada poderia ser mais irrelevante (Irrelevante, no original: termo usado na África do Sul para questionar não a boa intenção de instituições ou actividades, mas a sua eficácia em relação à realidade da opressão sofrida pelos negros. São frequentes também as palavras "relevante" e "relevância" neste contexto. N.T.) e portanto enganador. Os que acreditam nisso estão a viver na ilusão.



Em primeiro lugar, os círculos de brancos e negros são quase sempre uma criação de brancos liberais. Como prova de que se acham completamente identificados com os negros, conforme alegam, eles convidam alguns negros "inteligentes e articulados" para "tomar um chá em casa", ocasião em que todos os presentes fazem a mesma velha e gasta pergunta: "Como podemos provocar mudanças na África do Sul?". Quanto mais chás, deste tipo, alguém organizar, tanto mais liberal será e tanto mais livre se sentirá da culpa que perturba e amarra a sua consciência. A partir de então esse alguém se moverá nos seus círculos brancos - hotéis, praias, restaurantes e cinemas só para brancos - com a consciência menos pesada, achando que é diferente das outras pessoas. E, no entanto, no fundo da sua mente existe o constante pensamento de que tudo está muito bem para ele e que, por isso, não deveria preocupar-se com mudanças. Embora não vote nos nacionalistas (já que, de qualquer jeito, agora são a maioria), ele se sente seguro sob a protecção oferecida por eles e, inconscientemente, repele a ideia de mudança. Esse é o ponto que separa o liberal do mundo negro.



Os liberais encaram a opressão dos negros como um problema que precisa ser resolvido, algo que desfeia e estraga o panorama que, sem ela, seria muito bonito. De tempos a tempos eles se esquecem do problema ou deixam de olhar para o que desfeia a paisagem. Por outro lado, na sua opressão, os negros experimentam uma realidade da qual nunca conseguem escapar. Lutam para se livrar da situação e não apenas para resolver uma questão secundária, como é o caso dos liberais. Essa é a razão por que os negros falam com muito mais urgência que os brancos.



"Existe entre as pessoas, porque são seres humanos, uma solidariedade pela qual cada um é corresponsável por toda a injustiça e por todo o erro cometido no mundo, em especial pelos crimes cometidos na sua presença ou os que ele não pode ignorar."



Essa descrição da "culpa metafísica" explica de modo adequado que o fascismo branco "só é possível porque os brancos são indiferentes ao sofrimento e pacientes em relação à crueldade" com que as pessoas negras são tratadas. Em vez de empenharem todas as suas forças numa tentativa de eliminar o racismo da sua sociedade branca, os liberais desperdiçam muito tempo tentando provar, ao maior número possível de negros, que são liberais. Tal atitude provém da crença errónea de que estamos diante de um problema de negros. Não há nada de errado com os negros. O problema é o RACISMO BRANCO, e ele está bem no centro da sociedade branca. Quanto mais cedo os liberais perceberem isso, tanto melhor para nós, negros. A presença deles entre nós incomoda e serve para criar transtornos. Faz com que o foco de atenção seja desviado de pontos essenciais para conceitos filosóficos mal definidos, que ao mesmo tempo são irrelevantes para o negro e apenas servem para nos desviar do nosso rumo. Os brancos liberais precisam deixar que os negros cuidem dos próprios assuntos, enquanto eles devem preocupar-se com o verdadeiro mal de nossa sociedade: o racismo branco.



Em segundo lugar, os círculos mistos de brancos e negros são círculos estáticos, sem direcção nem programa. As mesmas perguntas são feitas e a mesma ingenuidade aparece nas respostas. A verdadeira preocupação do grupo é mantê-lo em funcionamento, mais que torná-lo útil. Nesse tipo de situação podemos ver um exemplo perfeito de como a opressão vem agindo sobre os negros. Fizeram com que eles se sentissem inferiores durante tanto tempo que se sentem consolados em beber chá, vinho ou cerveja com brancos que parecem tratá-los como iguais. Como consequência, têm o ego reforçado a tal ponto que se acham superiores aos outros negros que não recebem o mesmo tratamento dos brancos. É esse tipo de negro que constitui um perigo para a comunidade.



Em vez de se dirigirem aos irmãos negros e olharem os seus problemas comuns a partir de uma plataforma única, preferem cantar os seus lamentos para um auditório aparentemente simpático que se tornou perito em gritar em coro: "Que vergonha!". Esses negros de inteligência obtusa, egocêntricos, são tão culpados pela falta de progresso quanto os seus amigos brancos, pois é desse tipo de grupo que a teoria do gradualismo emana e é o que mantém os negros confusos, sempre à espera de que um dia Deus desça do céu para resolver os seus problemas. São pessoas de grupos como esses que todos os dias lêem cuidadosamente o jornal, procurando por qualquer sinal de uma mudança pela qual esperam com paciência, sem fazer nada para que ela aconteça. Quando o número de votos obtidos por Helen Suzman cresce em alguns milhares, esse aumento é visto como um marco importante da "mudança inevitável". Ninguém olha para o outro lado da moeda: a remoção de grandes contingentes de africanos das áreas urbanas, a iminente criação de zonas [proibidas a negros] de lugares como a Rua Grey, em Durban, e milhares de outras manifestações de mudança para pior.



Tais pontos de vista significam que sou contra a integração? Se por integração se entende a penetração dos negros na sociedade branca, a assimilação e aceitação dos negros de um conjunto de normas já estabelecido e de um código de comportamento estatuído e mantido por brancos, então SIM, sou contra. Sou contra a estratificação da sociedade em superior-inferior, branco-negro, que faz do branco um professor perpétuo e do negro um aluno perpétuo (e um mau aluno, além do mais). Sou contra a arrogância intelectual dos brancos, que os faz acreditar que uma liderança branca é uma condição sine qua non neste país e que os brancos têm um mandato divino para imporem o ritmo deles ao progresso. Sou contra a imposição de todo um sistema de valores ao povo nativo por parte de uma minoria colonizadora.



Se, por outro lado, a integração significar que haverá uma participação livre de todos os membros de uma sociedade, que haverá condições para a total expressão do ser numa sociedade que se transforma livremente conforme a vontade do povo, então estou de acordo. Pois não se pode negar que, em qualquer sociedade, a cultura compartilhada pelo grupo maioritário deve determinar as grandes linhas da direcção que a cultura conjunta dessa sociedade vai tomar. Isso não deve prejudicar os que sentem de modo diferente, mas, no conjunto, um país na África, onde a maioria do povo é africana, precisa inevitavelmente apresentar valores africanos e ser africano de verdade nos seus costumes.



"E quanto à acusação de que os negros estão a ficar racistas? Essa queixa é um dos passatempos favoritos de liberais frustrados que sentem que estão a perder terreno na sua actuação como guias. Esses auto-nomeados guias dos interesses dos negros vangloriam-se dos anos de experiência na luta pela defesa dos "direitos negros". Eles vêm fazendo coisas para os negros, em favor dos negros e por causa dos negros, mas quando estes anunciam que chegou a hora de fazerem as coisas por eles mesmos, todos os liberais gritam como se fosse o fim do mundo! Ei, vocês não podem fazer isso! Vocês estão a ser racistas. Estão a cair na armadilha deles.



Aparentemente está tudo bem com os liberais, desde que continuemos na armadilha deles.



As pessoas bem informadas definem o racismo como a discriminação praticada por um grupo contra outro, com o objectivo de dominar ou manter a dominação. Por outras palavras, não se pode ser racista sem que se tenha o poder de dominar. Os negros estão apenas a reagir a uma situação na qual verificam que são objectos do racismo do branco. Estamos nessa situação por causa da nossa pele. Somos segregados colectivamente - o que pode ser mais lógico do que reagirmos em grupo?



Quando os trabalhadores se reúnem sob os auspícios de um sindicato para lutar por melhores condições de vida, ninguém no mundo ocidental se surpreende. É o que todo mundo faz. Ninguém os acusa de terem tendências separatistas. Os professores travam as suas próprias lutas, os trabalhadores do lixo fazem o mesmo, e ninguém age como guia do outro. Mas, de algum modo, quando os negros querem agir por si, o sistema liberal parece encontrar nisso uma anomalia. Na verdade, é uma contra-anomalia. A anomalia encontra-se antes nos liberais quando são suficientemente presunçosos para acharem que cabe a eles lutar pelos negros. Os liberais precisam de compreender que o tempo do Bom Selvagem já passou, que os negros não precisam de um intermediário na luta pela sua própria emancipação. Nenhum verdadeiro liberal deveria ressentir-se com o crescimento da consciência negra. Pelo contrário, todo o verdadeiro liberal deveria perceber, que é dentro da sua sociedade branca que ele deve lutar por justiça. Se for realmente um liberal, tem de entender que ele também não passa de um oprimido, que, portanto, precisa lutar pela própria liberdade, e não pela liberdade daqueles vagos "eles" com quem, na verdade, não pode dizer que se identifica. O liberal deve concentrar-se, com dedicação total, na ideia de ensinar aos seus irmãos brancos, que num dado momento a história do país poderá ser reescrita e que poderemos viver "num país onde a cor não sirva para colocar um homem num compartimento". Os negros já ouviram muito sobre este assunto. Por outras palavras, o liberal precisa entender o papel de um lubrificante de modo que, quando mudarmos a marcha à procura de uma melhor direcção para a África do Sul, não se ouça o ruído dos metais em atrito, mas o som de um movimento livre e fluído de um veículo bem oleado.



Texto, em português, extraído do site CMI Brasil

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