Ken Loach: “A relação da Netflix com o cinema é como a da McDonalds com a comida”

Percebe-se que o realizador britânico é um homem de convicções. Sejam elas políticas, estéticas ou simplesmente de vida. Aos 83 anos mantém uma atividade invejável como cineasta, com um cinema de mensagem e valores políticos que lhe tem rendido os mais relevantes prémios: duas Palmas de Ouro em Cannes (em 2006, com Brisa de Mudança, e em 2016, com Eu, Daniel Blake). Ainda este ano passado mostrou também em Cannes Sorry We Missed You. A oportunidade de uma entrevista surgiu no festival de San Sebastian, onde atualizamos as suas principais preocupações políticas e sociais, numa saborosa aula de Economia Política. Tivemos até a oportunidade de o confrontar com os desenvolvimentos políticos em Portugal, embora se perceba que faz falta um maior envolvimento para atualizar a ideia que ainda persiste de um certo isolamento político do nosso país no fórum europeu. 

Absolutamente. Existem tantas histórias para contar.

São tempos críticos. Toda a questão das alterações climáticas é muito urgente, tal como o aumento da extrema direita. Algo que se quer ignorar porque as intenções são de continuar com uma sobreprodução e exploração do trabalho. O problema é que o gang Bolsonaro, Trump, Johnson, Netanyahu parece estar a ficar cada vez maior. A necessidade de resistir é cada vez maior.

Quando a Thatcher chegou ao poder, juntamente com Ronald Reagan, em que prosseguiam a mesma política, o que aconteceu era inevitável. Se baseamos a economia no mercado livre, que se traduz basicamente na competição entre grandes empresas internacionais, numa competição para manter os preços baixos, acabam por atacar os custos do trabalho e, consequentemente, destruir os sindicatos, porque pretendem que os trabalhadores se mantenham vulneráveis. Por isso têm de encontrar novas maneiras de os empregar. Porque se uma empresa se recusar a pagar o subsídio de férias e subsídio de doença, cortam também os seus custos, o que faz com que as outras empresas as sigam nessa política, caso contrário terão mais custos. Esta competição constante para reduzir os direitos dos trabalhadores e os seus rendimentos é inevitável se baseada no mercado livre. Está implícita no sistema e escrita no documento fundador da União Europeia para o mercado livre. Portanto, o que está a acontecer é inevitável. 

No meu entender, o Brexit é sobretudo uma distração. É uma distração, porque estas questões do trabalho precário, que é o tema que tratamos neste filme, é algo que está instalado no centro da União Europeia e existe por toda a Europa. Se sairmos e o partido da direita ficar no poder, continuará a existir depois da União Europeia. O Brexit é quase uma questão tática para a esquerda.

Porque os objetivos estratégicos são restaurar os direitos dos trabalhadores, é investir em indústrias públicas para facilitar a passagem dos principais meios de produção para o setor público. De certa forma, planificar a economia para travar as alterações climáticas, pois se não a planificarmos não poderemos travar essas alterações.

Sim, sobretudo nas indústrias antigas onde o investimento púbico desapareceu. Bem como a reforma dos transportes, a integração do transporte ferroviário com o rodoviário, pois precisamos disso para defender o clima. Essa é uma questão que tem de ser feita, estejamos na União Europeia ou não. Portanto, esta questão do Brexit é uma discussão entre dois lados da direita: um lado diz que queremos estar na Europa, como forma de segurar os mercados; a outra diz que queremos estar fora da Europa para podermos manter os salários baixos, impostos baixos nas grandes empresas, sem necessidade de seguir a magra regulamentação de proteção do meio ambiente e dos direitos dos trabalhadores. É, portanto, um conflito de ambos os lados da direita. Emboras consigam “torcer” a ideia para um problema nacional para que todos entendam que devem tomar um lado ou outro. Nesse sentido, são os dois lados da mesma moeda.

Acho que precisava que me aconselhasse nesse sentido...

Claro que sei que existe um governo de esquerda em Portugal. Há quanto tempo estão no poder? E tem tido sucesso?

Acho que precisamos de uma esquerda europeia. A dificuldade que teremos, e que vocês têm, é estarmos isolados com um governo de esquerda. Isso torna-se mais difícil. 

Exatamente. Precisamos de um governo de esquerda europeu. Tudo estaria melhor. Em Inglaterra é que tivemos também muitos boatos injustificados contra o Corbyn, no Partido Trabalhista.

Não, acho que conseguiremos seguir em frente. É claro que teremos algumas dificuldades, como vocês em Portugal, para comunicar o programa social, isto porque todos os jornais e revistas apenas falam do Brexit, que nos diz que as pessoas não acreditam na possibilidade da mudança. 

Tudo começa com o guião, na verdade. Sobretudo porque como o Paul (Laverty), o meu habitual colaborador, tudo começa com as conversas. Somos amigos e camaradas, partilhamos das mesmas ideias, gostamos da mesma equipa de futebol... É aí que emergem as ideias, essa universalidade. Se conseguirmos captar as verdadeiras relações humanas, isso não muda. A forma como as pessoas estão juntas não muda, isso é que é universal. O mesmo com os conflitos. As pequenas nuances. Isso nunca muda. 

Nem me fale nisso, que lembro-me da minha provecta idade... (risos)

É claro que muita coisa mudou, mesmo que continuemos a ser os mesmos observadores. No fundo, algo que permite que o espetador possa seguir esse pensamento. Acho que mantive esse lado. Hoje, com a Netflix e a Amazon, ou a televisão, percebemos que há a necessidade de imprimir um outro ritmo às coisas para manter a nossa atenção. Algo que acho um pouco pesado, sobretudo se isso acontece a todo o momento. Assim perde-se a viagem.

Não, acho que isso levanta alguns problemas. Um deles é o nível de controlo, que não se liga à forma individual como trabalhamos. A relação da Netflix com o cinema é como a da McDonalds com a comida: fazer produtos de consumo para o maior lucro possível. Tal como a Amazon, com essa capacidade monstruosa de distribuição. 

Na verdade, não. Para mim tem de existir algo pessoal para me interessar, uma pequena história.

Uma vez mais, é ao falar com o Paul (Laverty), nas várias conversas que vamos tendo. Por exemplo, este filme foi uma ideia do Paul. No trabalho as pessoas mantém um ar feliz e positivo, mas quando chegam a casa colapsam, ou pelo menos relaxam e não têm de continuar com esse papel. É aí que o stress começa. A nossa ideia foi o stress que provoca quando ambos os pais são trabalhadores precários.

Exatamente. O nosso governo tem muito orgulho em dizer que está no pleno emprego, ou seja que não existe desemprego. Isso é verdade, mas dois terços dos novos empregos na última década são precários. O que gera um aumento brutal das pessoas que necessitam de benefícios sociais, porque os salários não suportam o lado mais básico da vida. Temos 14 milhões de pessoas na pobreza, e mais de quatro milhões de crianças na pobreza. Temos sete milhões de pessoas em pobreza persistente e 1,5 milhões que não consegue comprar os produtos essenciais. Isto é brutal. E isto de pessoas que estão a trabalhar, mas que não conseguem comprar produtos básicos.

Acho que eles sabem que estão a ser explorados, o problema é como é que resistem a isso. Quando estamos na pobreza, a nossa força vai toda para a sobrevivência.

Uma vez mais, tem a ver com a escrita do guião. Mas temos de nos rodear de pessoas em que acreditamos. Por exemplo, o Ricky que faz de Chris, chegou a ser ator há alguns anos atrás, mas na verdade é um canalizador e guia uma carrinha. No filme percebemos que ele está muito próximo daquela vida de motorista de entregas. 

Precisamente. A Debbie é uma professora assistente. Mas evoca aqui esse problema tantas vezes esquecido dos cuidadores informais. É essa unidade entre ambos que vemos no filme e acreditamos, não só na sua unidade como célula familiar, mas também nas suas crises de stress.

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