Eletricidade sob captura privada

Ao longo de um ano, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) ao Pagamento de Rendas Excessivas aos Produtores de Eletricidade realizou uma viagem de estudo pelo mau governo no setor energético. A conclusão é clara: sob orientação europeia e por opção própria, os governos de Aníbal Cavaco Silva e de António Guterres executaram a privatização da EDP contratualizando rentabilidades futuras, elevadas e sem risco. Aumentou assim a receita do Estado na venda, mas esse valor acabou por ser pago várias vezes pelos consumidores, ao longo dos anos seguintes, numa fatura elétrica que é das mais elevadas da Europa. As indústrias grandes consumidoras conseguiram proteção com ajudas específicas, mas as pequenas e médias empresas (PME) e, ainda mais, os consumidores domésticos foram penalizados. Portugal bate recordes de pobreza energética.

Aquela rentabilidade inicial da EDP foi sendo ainda aumentada por novas decisões e contratos favoráveis, lógica que prevaleceu também no incremento do setor renovável sob o governo de José Sócrates. A Comissão de Inquérito analisou profundamente essas decisões e indicou medidas corretivas em diversas áreas. Com o voto favorável do Partido Socialista (PS), Bloco de Esquerda (BE) e Partido Comunista Português (PCP), foi recomendado um pacote de alterações políticas e legais que permite recuperar até mil milhões de euros já indevidamente pagos à EDP e ainda evitar custos futuros previsíveis de cerca de 200 milhões por ano[1].

Algumas dessas medidas foram anteriormente propostas por reguladores (ganhos resultantes do regime Custos de Manutenção do Equilíbrio Contratual [CMEC] e do abuso de posição dominante da EDP nas barragens) ou em documentos do governo revelados pela CPI (a recuperação de parte dos ganhos da EDP com a dívida tarifária). Outras medidas de corte em ganhos excessivos obrigam a alterações legais que a CPI também recomendou (a entrega à EDP da central de Sines por um período adicional sem qualquer contrapartida; a extensão dos preços garantidos aos produtores eólicos pelo governo do Partido Social Democrata (PSD) e do CDS-Partido Popular; o fim do subsídio à garantia de potência).

Porém, a posição do Partido Socialista tem sido irregular. Enquanto os deputados socialistas aprovavam estas recomendações ao lado do Bloco de Esquerda e do Partido Comunista, o secretário de Estado da Energia, João Galamba, expressava-se abertamente contra elas: «se identificamos rendas excessivas e as devemos cortar e isso implica rasgar contratos? A minha resposta é não».

Noções políticas como «rasgar contratos» ou «estabilidade regulatória» são típicas do discurso das empresas para anatemizar medidas de governo que, à luz da experiência concreta, revejam remunerações excessivas fixadas no passado. Em muitos países têm ocorrido correções desse tipo (e a luz não se apagou). Mesmo em Portugal, a litigância das empresas não impediu que, pontualmente (sob a pressão da Troika ou, sob o atual governo, no mandato do ex-secretário de Estado Jorge Sanches), o Estado tivesse imposto correções relevantes, como a CPI também registou. A prevalecer, a posição de Galamba, apoiada pelo ministro do Ambiente e da Transição Energética, João Matos Fernandes, privaria de qualquer consequência o trabalho da comissão de inquérito. O facto de todas as recomendações aprovadas estarem ausentes do programa eleitoral do PS sublinha esse descomprometimento.

central de Sines

Central termoelétrica de Sines. Foto de Paulo Valdivieso/Flickr

Painéis solares

Painéis solares. Foto James Moran/Flickr

Durante o mês de Julho realizaram-se os procedimentos para a maior atribuição de potência de produção elétrica em dez anos. O leilão de 1400 MW para novas centrais solares (primeiros lotes de um conjunto de 6000 MW previstos no PNEC 2020-2030) parece confirmar[5] uma ideia simples: a atribuição de potência para produção através de leilões com regras claras resulta em tarifas mais baixas para os consumidores, refletindo o amadurecimento e o embaratecimento das tecnologias de produção. A tarifa média obtida nestes leilões é de 20 euros por megawatt hora (superando a própria expetativa do governo, que considerava 30 euros o limiar da viabilidade dos projetos[6]). Os produtores obtêm assim uma garantia de venda de toda a sua produção por preços substancialmente abaixo do atual preço do mercado (52 euros), onde aquela venda não é garantida.

Mas este «recorde do mundo» no leilão solar, na classificação do ministro Matos Fernandes, pode criar um forte incómodo político na frente eólica. O inquérito às rendas excessivas concluiu que o governo PSD/CDS aceitou em 2013 uma proposta da EDP com enorme potencial ruinoso. A partir de 2021, à medida que terminem as tarifas contratualizadas em 2005-07 com os produtores eólicos, essas centrais, já amplamente amortizadas, deveriam ter a sua remuneração revista, caindo para o nível do leilão eólico mais recente. Esse regime, refletindo a baixa dos custos tecnológicos, baixaria substancialmente o preço desta energia, considerando o que se verifica em leilões eólicos noutros países. Foi precisamente para evitar esse processo que os produtores eólicos, com a EDP à cabeça, se propuseram pagar uma «contribuição voluntária» para aliviar a fatura dos consumidores, muito pressionada pelo aumento da taxa de imposto sobre o valor acrescentado (IVA) a partir de 2011. Em troca daquela «contribuição», em 2013 o governo definiu a remuneração após 2021, através de um esquema que a situará, no mínimo, em 67 euros por megawatt/hora.
Ora, entre os beneficiários deste jackpot eólico estão alguns dos mais fortes concorrentes aos recentes leilões de potência solar, que acabam de provar na prática até que ponto o acordo eólico de 2013 é lesivo para os consumidores.

A comissão de inquérito recomendou, de novo com o voto favorável do PS, a abertura de negociações com as empresas para devolução daqueles pagamentos e reposição do critério do leilão para fixar a remuneração pós-2021. Também de novo, o governo recusa seguir a recomendação do Parlamento. Segundo João Galamba, esta «foi uma má decisão e eu não a teria tomado. Independentemente disso, houve acordos celebrados e o Estado tem o dever de os respeitar. Não é por não gostar de medida do passado que a posso revogar. O Governo não está nem estará disponível para isso»[7].

O problema é que, até 2013, os consumidores estavam protegidos por uma lei e os produtores propuseram-se comprar essa proteção. O novo regime criado, ao contrário do que sugere Galamba, é bastante precário, pois assenta numa «contribuição voluntária». Se esta for devolvida, é reposto um prévio quadro legal.
Se o próximo governo insistir em proteger o lado mais forte, este esquema custará aos consumidores, depois de 2021 e por mais de dez anos, mil milhões de euros adicionais. As maravilhas dos leilões, afinal, têm dias.

Liu Zhenya, presidente da State Grid, e Vítor Gaspar, ministro das Finanças, após a cerimónia de venda de 25% da REN.

Liu Zhenya, presidente da State Grid, e Vítor Gaspar, ministro das Finanças, após a cerimónia de venda de 25% da REN. Foto Miguel A. Lopes/Lusa.

Portugal e Inglaterra são os únicos países europeus com as suas redes de transporte de eletricidade em alta tensão totalmente privatizadas. O caso português é ainda mais original pois deixa este monopólio natural – com grandes implicações em termos de soberania e segurança – confiado a um Estado estrangeiro, o chinês. Acresce que, por cá, o operador da rede de transporte acumula o planeamento da rede e a gestão global do sistema (os centros de «despacho»), funções críticas para uma transição energética com contenção de custos, segurança de abastecimento e integração de nova produção renovável. Quando hoje se prepara a instalação de milhares de megawatts em centrais fotovoltaicas e em solar descentralizado, criando novos desafios à rede nacional de transporte de eletricidade, o planeamento e gestão do sistema não devem estar submetidos à propriedade privada.

É aliás por esses motivos que o equivalente inglês da REN (o grupo National Grid) foi obrigado em Abril de 2019 a constituir duas empresas inteiramente independentes e separadas: uma de operação do sistema e outra concessionária da rede, sem partilha de estrutura ou administradores. Em Portugal, sob a propriedade do Estado chinês, a REN mantém um duplo conflito de interesses: por uma lado, acumula gestão do sistema e concessão da rede; por outro lado, o Estado chinês possui, além da REN, o produtor hegemónico no país, a EDP. Portugal é um caso único.

Os ativos mais pesados da concessão da REN são os da própria infra-estrutura de transporte de energia. Ora, uma recuperação estatal limitada aos ativos da REN mais leves em capital (precisamente o planeamento e a gestão do sistema elétrico) não custaria mais que 50 milhões de euros, cifra facilmente acomodável num único orçamento do Estado. Esta retirada das seções de planeamento da rede e gestão do sistema à REN privada, originando um operador de sistema independente sob controlo público, não obriga à nacionalização do conjunto da REN. O controlo público destes centros de decisão estratégica bastaria para eliminar o atual conflito de interesses, assegurando que a segurança do abastecimento e a preparação do desenvolvimento do sistema elétrico nacional deixariam de estar sob controlo do capital privado que detém a REN e a EDP. No entanto, sob a pressão privada[8], esta proposta do Bloco de Esquerda foi rejeitada com os votos do PS e da direita em 2017. Isto apesar de muitos responsáveis socialistas, atuais e passados, publicamente lastimarem a decisão do governo PS de iniciar a privatização deste monopólio natural, concluída já sob a Troika.

Manso Neto, António Mexisa e Eduardo Catroga.

Manso Neto, António Mexia e Eduardo Catroga. Foto Tiago Petinga/Lusa.

Ao longo do inquérito parlamentar, os responsáveis pelo modelo privatizador defenderam as rendas garantidas e a proteção do monopólio (em particular a entrega das barragens, sem concurso, à EDP privada) recorrendo à velha retórica de bloco central – a defesa «dos centros de decisão nacional», da integridade das empresas e da sua gestão portuguesa. Ouvido na CPI, em 2019, este discurso tornava-se anacrónico: está em curso o processo de desmantelamento da produção da EDP em Portugal, assumido pela administração de António Mexia e pelos accionistas liderados pelo fundo abutre norte-americano Elliot. De acordo com a agência Bloomberg[9], a venda pela EDP das barragens portuguesas pode valer 2 mil milhões de euros e não faltam os interessados, entre os quais as espanholas Endesa e Iberdrola.

A EDP é hoje uma empresa disputada entre interesses de longo prazo – do Estado chinês, empenhado numa posição estratégica na Europa, mas que falhou o controlo da EDP na sua Oferta Pública de Aquisição – e interesses de curto prazo – dos accionistas e administradores interessados na venda de ativos em Portugal para financiar investimentos no exterior e engordar dividendos. Note-se que os dividendos da EDP têm sido estáveis e em alta: o Estado chinês já recebeu da EDP e da REN dividendos ilíquidos equivalentes a 40% e 50% do que nelas aplicou em 2012. Mas o desmantelamento da produção portuguesa pode permitir ir mais longe.

À medida que os contratos de preços garantidos vão chegando ao seu final (e tal como os críticos da privatização sempre previram), o desmantelamento é uma opção racional para os accionistas e a propriedade privada destruirá o potencial estratégico da atual EDP para Portugal: um serviço de energia que integre as competência do país, sustentado na produção a partir de fontes diversas, com obrigações de soberania energética e independente das entidades de Espanha, país com quem disputamos rede, rios e riscos nucleares (para não falar no Mibel – Mercado Ibérico de Eletricidade).

Confirma-se que esse serviço de energia prestado por uma EDP nacional estaria sempre ameaçado pela propriedade privada. A renacionalização da EDP, a par da dos Correios, torna-se portanto prioritária em qualquer programa de reversão de privatizações.

 

[1] O relatório final encontra-se disponível em www.parlamento.pt/sites/COM/XIIILeg/CPIPREPE/Paginas/RelatoriosActividade.aspx. O capítulo eliminado – sobre as condições da extensão do monopólio da EDP sobre as barragens –, chumbado com os votos da direita e a abstenção do PS, está reproduzido na declaração de voto do Bloco de Esquerda.

[2] Cf. Raquel Figueiredo, Pedro Nunes, Mónica Meireles, Mara Madaleno e Miguel C. Brito, «Replacing coal-fired power plants by photovoltaics in the Portuguese electricity system», Journal of Cleaner Production, n.º 222, Fevereiro de 2019, www.researchgate.net.

[3] A posição da EDP sobre o fecho de Sines tem mudado ao sabor da evolução do preço de mercado da eletricidade. Em Março de 2018, com a eletricidade a 29,5€/MWh, a EDP admitia encerrar a central de Sines «bastante antes de 2025». Dizia António mexia que «tudo depende da questão fiscal». Em Julho de 2019, com o preço de mercado em 51,8€/MWh, a EDP regressa ao tema das limitações da rede.

[4] Bárbara Silva, «ERSE. Central de Sines pode render mais de 950 milhões à EDP até 2025», Dinheiro Vivo, 24 de Janeiro de 2019, https://www.dinheirovivo.pt/economia/erse-central-de-sines-pode-render-mais-de-950-milhoes-a-edp-ate-2025/".

[5] No momento em que escrevo, ainda não existe informação completa sobre o resultado de todos os lotes leiloados.

[6] José Milheiro e Bárbara Silva, «João Galamba afirma: não é possível reverter as rendas excessivas», TSF, 19 de Julho de 2019, https://www.tsf.pt/portugal/economia/interior/joao-galamba-afirma-nao-e-possivel-reverter-as-rendas-excessivas-11128665.html.

[7] Idem.

[8] «Rodrigo Costa acusa BE de querer nacionalizar parte da REN», Jornal Económico, 30 de Março de 2017, https://jornaleconomico.sapo.pt/noticias/rodrigo-costa-acusa-be-de-querer-nacionalizar-parte-da-ren-140341

[9] Dinesh Nair e Manuel Baigorri, «Brookfield Weighs Bid for Iberian Hydro Assets Owned by China Three Gorges», Bloomberg, 4 de Julho de 2019, https://www.bloomberg.com/news/articles/2019-07-04/brookfield-endesa-are-said-to-weigh-bids-for-edp-hydro-assets.