Tunísia: Mãos negras e luvas cinzentas

Santiago Alba Rico, filósofo e especialista sobre mundo árabe, descreve os efeitos da morte de Chukri Belaïd no Governo e na oposição e assinala que a resposta coletiva ao atentado trará o fortalecimento da democracia e da Frente Popular ou a vitória “de todas essas mãos negras e luvas cinzentas que procuram mergulhar o país no terror e na violência”.

17 de fevereiro 2013 - 22:10
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Na quarta-feira, 6 de fevereiro, a avenida Bourguiba voltou a encher-se de detonações e gases lacrimogéneos. Desde manhã, uma multidão foi-se concentrando junto ao Ministério do Interior transportando bandeiras tunisinas e da Frente Popular e clamando a sua dor e a sua raiva: “Tunísia Tunísia, livre livre, fora o terrorismo” ou “Segurança, liberdade, dignidade nacional” ou o inevitável “O povo quer a queda do regime». Às duas da tarde, quando o cortejo com o cadáver de Chukri Belaïd chegou à praça dos Mártires, uma violenta carga policial dispersou as 8.000 pessoas concentradas na avenida. Entretanto, em Sidi Bouzid, berço da revolução, ardia uma sede do partido Ennahda e em Gabes, Sfax, Mahdia e Gafsa - um pouco por todo lado - realizavam-se protestos e manifestações.

Chukri Belaïd, de 48 anos, era o líder do Movimento Patriótico Democrático Unificado, força marxista e panarabista que faz parte da Frente Popular. Juntamente com Hamma Hamami, o dirigente do Partido dos Trabalhadores, era a face mais visível, a mais mediática, a mais beligerante da recém nascida coligação de esquerdas.

Desde há meses vinha denunciando a cumplicidade entre o Ennahda e as Ligas de Defesa da Revolução, uma rede confusa de comités locais que alguns descrevem como “o braço armado” ou as “milícias” do partido islamista no Governo. Poucos dias antes do seu assassinato, Belaïd tinha proporcionado uma lista de presumíveis membros do Ennahda implicados na interrupção violenta de um ato da Frente Popular em Le Kef. Mesmo na véspera da sua morte, numa intervenção televisiva, tinha alertado contra a violência política e acusado o Governo de conivência e indução.

Para os milhares de tunisinos que se manifestaram nesta quarta-feira para prestar homenagem ao novo mártir da revolução, o vínculo entre o Ennahda e o atentado da terça-feira à noite é evidente. Também para os dirigentes da oposição. Hamma Hammami, numa declaração enérgica e serena, atribuiu a responsabilidade “política e moral” do crime ao Ennahda, ao Governo da “troika” e à própria Assembleia Constituinte, que teria fechado os olhos ou até desculpado a crescente confrontação. Outros líderes da Frente, menos prudentes, acusaram o Ennahda de ter dado a ordem de matar o seu companheiro. As contundentes condenações de todos os políticos sem exceção - o primeiro-ministro Jabali, o xeique Ghanouchi ou o presidente Marzouki - soam como hipócritas ofensas aos ouvidos dos partidários da vítima.

Este vínculo evidente apresenta, em qualquer caso, dois pontos débeis. O primeiro, efetivamente, é que é demasiado evidente. O segundo é que, no quadro de uma luta partidária mal assentada num abismo de mãos negras, é mais que duvidoso que o Ennahda beneficie o mínimo com um aumento exponencial da tensão e da instabilidade.

Com metade da população aterrorizada e a outra metade furiosa, a maior parte das perguntas são respondidas com reações viscerais e, portanto, ficam inquietantemente no ar, alimentando a angústia. Não sabemos quem matou Chukri Belaïd nem o que acontecerá a seguir; não sabemos sequer quem tirará proveito deste abalo política e emocional. Podemos apenas descrever os efeitos.

O primeiro tem que ver com o Governo. A remodelação anunciada há dois meses tinha ficado nas mãos dos sócios da “troika” depois da oposição se ter retirado das negociações. Mas os três partidos dirigentes não se punham de acordo e inclusive o presidente Marzouki tinha ameaçado demitir-se do seu cargo se não fossem aceites as condições do CPR. Essas condições tinham que ver com a saída de Rafik Abdesalam, implicado num escândalo de corrupção, do Ministério dos Negócios Estrangeiros; o primeiro-ministro Jebali estava disposto a sacrificar o genro de Ghanouchi, mas este obstinava-se a apoiá-lo.

Nesta quarta-feira, depois do assassinato de Chukri Belaïd, o líder do Ennahda pediu um adiamento da remodelação governamental e imediatamente muitos tunisinos precipitaram-se em conjeturas sobre complots. Horas mais tarde o primeiro-ministro Jebali anunciou o “aceleramento” da remodelação, que se daria nas próximas 24 horas, e muitos tunisinos - quiçá os mesmos - entregaram-se a conjeturas sobre complots.

O segundo efeito tem que ver com a oposição. Durante os últimos dois meses Nide Tunis, o partido do bourguinista Caid Essebsi e dos “fulul” (“fiéis”) do regime, atraiu para a sua órbita a maior parte da oposição laica. Só resistia a Frente Popular. Poucas horas depois da morte de Chukri Belaïd a Frente Popular reunia-se com Nide Tunis e os seus partidos satélites e juntos emitiam um comunicado no qual anunciavam algumas medidas comuns: a convocação de uma greve geral, a retirada da Assembleia Constituinte de todos os deputados da oposição e a exigência de demissão de um Governo, aos seus olhos definitivamente privado de toda a legitimidade. Enquanto o Governo descarrila, a oposição é cada vez mais um “bloco”. A confrontação bipolar torna-se assim mais clara e virulenta. E muitos tunisinos precipitam-se, como não, em conjeturas sobre complots.

O assassinato de Chukri Belaïd marca uma viragem dramática e sem retorno, pelo menos mental, nesta estratégia de tensão montada entre estruturas por uma - ou duas ou três - forças interessadas em desviar o povo tunisino da sua revolução. Fará falta um exercício quase ascético de inteligência estratégica para não cair na armadilha. Uma grande resposta coletiva deve deter os assassinos. Mas da intensidade, qualidade e prudência desta resposta dependerá que o medo e a fúria deem passagem a um fortalecimento da democracia e, portanto, da Frente Popular ou a uma vitória de todas essas mãos negras e luvas cinzentas que procuram mergulhar o país no terror e na violência.

Artigo de Santiago Alba Rico, filósofo e especialista sobre mundo árabe publicado em gara.naiz.info. Tradução de Carlos Santos para esquerda.net

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