Quantas vidas vale o negócio das vacinas?

A vacina contra a covid-19 lançou uma grande esperança na luta global contra a pandemia. Mas essa esperança parece agora defraudada pelo modelo de resposta escolhido, marcado pela escassez de vacinas, falta de transparência e decisões incompreensíveis.

07 de March 2021 - 16:47
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As patentes vão estrangulando a produção em massa e as farmacêuticas recusam partilhar a tecnologia criada pela investigação pública, para prejuízo da saúde pública global. Sem vacinas, as poucas que existem são alvo de competição, negócios especulativos e também política externa. Aquilo que deveria ser uma coisa boa perdeu-se numa encruzilhada de interesses, cujas dramáticas consequências (sociais, económicas e políticas) ainda não são possíveis de antecipar na sua totalidade, mas que apresentam já preocupantes expressões de nacionalismo, de imperialismo e de profundas desigualdades.

Em Portugal o debate tem sido muito marcado pelas decisões tomadas a nível europeu. A eurodeputada Marisa Matias, uma das coordenadoras da Comissão de Indústria, Investigação e Energia fala-nos, numa entrevista ao Esquerda.net, da sua experiência no inicio deste processo, desde há um ano, no grupo de contacto do Parlamento Europeu com os CEO's das grandes farmacêuticas. Não ficou surpreendida com os resultados a que se chegou porque assistiu à falta de transparência do processo, ao sobrepeso das empresas nas tomadas de decisões e à complacência das autoridades europeias com os seus interesses. Também o eurodeputado José Gusmão, que tem sido muito critico deste modelo de produção de vacinas, no artigo "Vacinas Covid: quando as patentes só empatam" aborda o problema de fundo da produção, os constrangimentos que originam a escassez e rebate os vários argumentos liberais que procuram justificar o modelo existente.

José Aranda da Silva, que foi bastonário da ordem dos farmacêuticos, presidente do Infarmed e membro do conselho diretivo da Agência Europeia do Medicamento (EMA), fala-nos da vacina como "um direito humano universal". E recorda que foi para lidar com situações como a que vivemos que, desde há cem anos, foram criadas as figuras jurídicas legislação sobre propriedade industrial, como a licença obrigatória. Já para o secretário-geral da ONU, António Guterres, que considera um ultraje moral esta desigual repartição de vacinas pelo globo, "o mundo enfrenta uma pandemia de abusos dos direitos humanos em virtude da Covid-19" e avisa que o vírus vem servindo como pretexto para esmagar o dissenso, criminalizar liberdades e silenciar a informação em muitos lugares. 

O médico Bruno Maia, que tem também olhado atentamente este tema, utiliza as palavras do secretário-geral da ONU no artigo “Sucesso científico e falência moral", em que aborda a desigual repartição de vacinas a nível global, mas também o papel do investimento público e da investigação pública na descoberta das vacinas, assim como o papel e o modelo de negócio das farmacêuticas.

Jorge Luis Díaz e Álvaro Arador consideram que "A propriedade intelectual farmacêutica e a sua ameaça para a saúde pública". Trazem uma perspetiva crítica da propriedade intelectual na saúde, sobre história da formação das suas leis no contexto das instituições de regulação do comércio internacional e sobre o papel das patentes como instrumento de acumulação de capital e na criação de oligopólios.

Sobre a dimensão das consequências geopolíticas das escassez de vacinas, Michael Jennings fala-nos da "Diplomacia da vacina" e como alguns países usam as suas doses para fortalecer os laços regionais e aumentar o seu próprio poder e status global. Já Nuno Veludo fala-nos de todos os perigos de um remendo em forma de solução, no artigo "Passaporte de vacinação: liberdade ou desigualdade?", chamando atenção para o facto desta medida ser "discriminatória, perigosa, duvidosa cientificamente" e de desviar "o foco que o esforço global deve ter". Em "AstraZeneca, os países pobres pagam o dobro", Andrea Capocci descreve a desigualdade de tratamento que uma das maiores farmacêuticas pratica com diferentes países, sem qualquer critério ou regulação.

"Dinheiros Públicos, Vacinas Privadas" (José Gusmão, Moisés Ferreira, Bruno Maia) faz uma panorâmica geral do financiamento público à investigação, do modelo de produção, do papel das farmacêuticas e da fraqueza da Comissão Europeia perante os interesses. José Soeiro, em "Vacinas, atrasos e patentes: a bolsa ou a vida?", coloca a questão: quem nos pôs, enquanto comunidade, na mão das farmacêuticas?

Este dossier reuniu este conjunto de contributos críticos, observações sobre o panorama atual e propostas de modelos de resposta diferentes. A informação nova que diariamente lança luz sobre todos os bloqueios deste processo muito pouco transparente, faz com que os textos sejam particularmente marcados pelo momento em que foram escritos e publicados. Pode acompanhar as notícias sobre o tema no Esquerda.net através deste link.

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