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Quem deve financiar a ciência?

Sem financiamento público, a investigação básica não fica assegurada. Sendo esta  investigação fundamental para o avanço do conhecimento, mesmo a investigação mais  aplicada fica em sérios riscos a longo-prazo sem um sério investimento a montante.  Por Ana Isabel Silva, investigadora em Ciências da Saúde no i3S.

A pandemia da Covid-19 alertou todos para a importância da ciência nas nossas  vidas e como o desenvolvimento científico nos afeta diretamente. A rapidez no  desenvolvimento de uma vacina eficaz permitiu-nos sair desta pandemia e retomar a  quase normalidade. É, por isso, espantoso que saídos de uma pandemia onde a ciência se  revelou fundamental o governo tenha decidido cortar o seu financiamento, num corte que  chega aos 32 milhões de euros. Afinal, que lições nos sobraram da pandemia?

Todas as vacinas eficazes para a Covid-19 são comercializadas por empresas  farmacêuticas privadas. O que nos leva a pensar, então quem faz as importantes  descobertas científicas? Quem financia e quem deve financiar a ciência? É necessário que  o Estado financie diretamente a investigação científica ou deve apoiar as empresas que o  fazem? Devem ser as instituições públicas a ditar que caminhos na ciência devemos  explorar, devem ser os próprios investigadores, o público em geral ou as empresas?  Portugal é um dos países da OCDE que menos investe em Ciência. No entanto, o governo  assume como objetivo atingir os 3% do PIB no investimento neste setor. Apesar de ser  uma ambição transversal a vários partidos, PS e PSD e até o Livre assumem que apenas  um terço deste investimento deve vir de instituições públicas. O restante terá de ser  assegurado pelo setor privado. É urgente refletir sobre este modelo de financiamento e  ser claro sobre as suas consequências, sejam elas imediatas ou a longo-prazo.

Se este debate, antes da pandemia, era relevante porque respondia a que modelo  de economia do conhecimento é que queremos construir para o futuro, com a experiência  da pandemia percebemos que não podemos ter as instituições democráticas dependentes  das permanentes chantagens da indústria farmacêutica, como temos vindo a assistir. A  capacidade de pressão sobre o poder político por parte do setor privado tem impedido  que, a nível planetário, consigamos dar uma resposta cabal a um problema que já o nome  indica que só se resolverá com cooperação internacional. Os exorbitantes preços que as  principais empresas que produziram a vacina impuseram aos Estados e à União Europeia  são a prova de que o bem público não combina com o lucro desejado do privado.

É por isso essencial que, a par do debate sobre investimento na Ciência, tenhamos  consciência de que, ao contrário do que os liberais dizem, é claro que interessa saber de  onde vem o dinheiro e quem é o que vai gerir. O Estado deve assumir um papel decisivo  no desenvolvimento das políticas para o Conhecimento e garantir a sua democratização.  A par disso, é imprescindível que o esforço (apesar de curto, ainda) que todos nós fazemos  na formação avançada das novas gerações não se perca pela escassez de um tecido  produtivo que as retenha no seu país. Este esforço deve contribuir também para capacitar  as respostas dos serviços públicos e reforçar a relação entre os decisores políticos e os  cidadãos.

Sem financiamento público, a investigação básica não fica assegurada. Sendo esta  investigação fundamental para o avanço do conhecimento, mesmo a investigação mais  aplicada fica em sérios riscos a longo-prazo sem um sério investimento a montante. Além  disso, doenças que não são tão prevalentes ou importantes ficarão também para segundo  plano. Aliás, o vírus da SARS-CoV-1 foi estudado por instituições públicas há bastantes  anos. Não fosse essa investigação nesse tempo, sem utilidade imediata, a aplicabilidade  das vacinas atuais teria sido seriamente atrasada.

Com isto, não achemos que a investigação com financiamento das instituições  públicas está livre da visão economicista da ciência. Há algum tempo que o Estado tem  assumido a visão liberal da investigação e desenvolvimento. Precisamos de um povo que  tenha uma palavra a dizer sobre a investigação que fazemos, que se envolva, que discuta.  E de investigadores livres que possam ter a liberdade e criatividade no seu trabalho. Quem  deve financiar? Quem deve beneficiar desse investimento? Quem deve decidir as áreas  estratégicas desse mesmo investimento? A amplitude de possíveis respostas é equivalente  a todo o espectro político. Sabemos que é na defesa de uma política pública que  defenderemos o bem comum.

Sobre o/a autor(a)

Bioquímica e investigadora doutoranda no I3S
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Esquerda Saúde 2

Revista Esquerda Saúde nº2

31 de Maio 2022

A edição de junho de 2022 já está disponível online e traz em destaque um dossier sobre investigação em saúde. Leia aqui a revista em formato pdf.

Editorial: Já está na altura de dignificar o trabalho médico?

31 de Maio 2022

Horas extra, precariedade, perda de salário e uma pandemia. Numa profissão que defende a humanização dos cuidados de saúde, não é compreensível que quem presta cuidados o faça sob condições desumanas. Por Tânia Russo, médica no Hospital Amadora-Sintra, dirigente sindical e deputada municipal em Sintra

EUA: O triunfo do conservadorismo contra as decisões das mulheres

31 de Maio 2022

O país encontra-se dividido entre os estados que permitem livremente o acesso ao aborto nas condições da lei (até às 24 semanas de gestação) aceitando mesmo mulheres de outros estados, e os que reduzem drasticamente as condições da lei, com sistemáticas represálias em relação aos profissionais de saúde que colaboram na prática de aborto.  Por Ana Campos, médica obstetra

 

“Das pessoas trans que recorreram ao SNS, mais de metade sofreu discriminação”

31 de Maio 2022

Entrevista a Jo Rodrigues, presidente da Anémona, uma associação de profissionais de saúde e seus aliados criada para aproximar os serviços de saúde das pessoas transgénero e não-binárias e combater a transfobia.

 

Hayek, Pinochet e os social-liberais entram num bar…

31 de Maio 2022

No Chile, a ‘reforma’ liberal é cara e ineficiente. Custa 7% do salário aos utentes, canaliza 50% dos recursos para 20% da população e os ganhos em saúde são alcançados pela resposta pública e não pela privada. Por Moisés Ferreira, dirigente do Bloco de Esquerda

O negócio vai bem (a Saúde nem por isso)

31 de Maio 2022

A faturação e os lucros dos grupos privados da saúde não pára de aumentar. Estes lucros crescentes não impedem que estas empresas sejam conhecidas por más práticas laborais. Por Maria Ribeiro, enfermeira emigrada na Bélgica

 

Inovação em Saúde: Importância da investigação clínica e de translação

31 de Maio 2022

A investigação clínica e de translação visa melhorar os cuidados de saúde e os prognósticos dos pacientes. É essencial para a melhoria do bem-estar das populações e deve estar ao alcance de todos. Por Maria João Carvalho, Investigadora do Instituto de Biomedicina, Departamento de Ciências Médicas da Universidade de Aveiro.

 

O papel do mercado no desenvolvimento de vacinas: Fonte de avanços ou força de bloqueios?

31 de Maio 2022

Parto para esta reflexão com base em dois exemplos muito concretos: o das vacinas de mRNA contra a COVID-19, que todos conhecemos, e o de uma vacina contra a malária, o principal foco de vários anos da minha investigação científica. Por Miguel Prudêncio, investigador principal do Instituto de Medicina molecular

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Eutanásia: Uma lei contra a prepotência

31 de Maio 2022

As iniciativas dos partidos proponentes da despenalização, já entregues ou anunciadas, mostram que a Assembleia da República manterá o registo de responsabilidade e de tolerância que imprimiu a todo o processo anterior. Por José Manuel Pureza, dirigente do Bloco de Esquerda.

Cuidados paliativos: Direitos humanos em fim de vida

31 de Maio 2022

É prioritário investir na formação diferenciada em cuidados paliativos dos profissionais de saúde e criar novas unidades de apoio ao internamento paliativo na comunidade que permitam o controlo de sintomas e prevenção de complicações, aliviando o sofrimento, permitindo assim cuidados personalizados e de proximidade. Por Gisela Almeida, Enfermeira Especialista, Instituto Português de Oncologia, Coimbra

 

Acolher e cuidar dos refugiados

31 de Maio 2022

Embora a lei determine que o refugiado tem direito a cuidados de saúde no SNS, quem está nos serviços de saúde conhece bem que nem sempre são dadas as respostas céleres e adequadas aos refugiados que a eles recorrem. Por Sónia Pinto, enfermeira de família.

Açores: Para os profissionais de saúde, uma salva de… precariedade!

31 de Maio 2022

É verdade que o reforço de meios humanos foi necessário para o combate à pandemia, mas também o é para o normal funcionamento e recuperação de toda a atividade assistencial. Por Jéssica Pacheco, enfermeira, Açores.

Transformar o SNS, a agenda de um encontro à esquerda

31 de Maio 2022

Realizou-se a 21 de Maio o Encontro Nacional Sobre Saúde do Bloco de Esquerda, em Lisboa. Foram vários os contributos para o debate e destacamos aqui algumas breves passagens de cada um.

Revisão da literatura – a legalização da canábis aumenta o consumo entre os jovens?

31 de Maio 2022

Uruguai e Canadá legalizaram a canábis recretiva em 2013 e 2018, respetivamente. Dois estudos recentes sobre o consumo recreativo oferecem-nos uma visão sobre o que pode ser a realidade após a legalização. Por Bruno Maia, médico.