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“Das pessoas trans que recorreram ao SNS, mais de metade sofreu discriminação”

Entrevista a Jo Rodrigues, presidente da Anémona, uma associação de profissionais de saúde e seus aliados criada para aproximar os serviços de saúde das pessoas transgénero e não-binárias e combater a transfobia.

 

O que é a Anémona?

A Anémona é uma associação de pessoas médicas LGBTI+ e suas aliadas, que nasceu com a necessidade de inserir no SNS políticas de saúde para pessoas trans não-binárias. Não respondemos só a pessoas trans que necessitam de fazer transição, mas também a todo o tipo de cuidados de saúde que sejam necessários, nomeadamente referenciação a profissionais “LGBT-friendly”. Há dentro da comunidade LGBTI+ o receio de ir ao SNS, com medo de sofrer algum tipo de discriminação. As pessoas procuram um local ou profissional que seja seguro. Isto que fazemos é um penso rápido e não é suficiente. São necessárias alternativas estruturais, nomeadamente a educação e formação de profissionais de saúde. Nós damos formação a profissionais, maioritariamente estudantes de medicina, pessoas médicas em centros de saúde e em hospitais. Já chegamos a 600 estudantes de Medicina e 200 pessoas médicas. Tentamos produzir “guidelines” portuguesas a partir da revisão de recomendações internacionais.

As normas em vigor excluem as pessoas trans?

Muitas das normas publicadas pela Direção-Geral da Saúde (DGS) são trans-excludentes, como foi o caso da norma da vacina contra a Covid da Johnson & Johnson, que só estava recomendada para homens. A norma não especificava qualquer orientação para pessoas trans – um homem trans, sob tratamento hormonal poderia tomar a vacina? E uma mulher trans sob estrogénios? Tudo está escrito de uma forma binária em que o marcador de sexo no cartão de cidadão é confundido com o sexo biológico, que é confundido com a identidade de género. Isto resulta na exclusão de pessoas.

Estamos neste momento a fazer uma revisão acerca de rastreios para profissionais de Medicina Geral e Familiar – sobre rastreio do cancro do colo do útero, do cancro da mama e da próstata.

Qual é o estado da acessibilidade das pessoas trans a cuidados médicos relacionados com a sua identidade de género?

Uma pessoa trans que começa a sua transição em  qualquer lugar de Portugal, tem que se deslocar a Coimbra para fazer o processo cirúrgico. Mesmo que já tenha anos de acompanhamento psicológico, psiquiátrico ou de Endocrinologia, quando chega a Coimbra tem que passar por todos esses passos outra vez. A lista de espera para uma primeira consulta é de alguns meses, depois dessa consulta até à consulta de Cirurgia são outros tantos e da consulta de Cirurgia até à cirurgia propriamente dita são mais não sei quantos meses. A última pessoa em processo de transição com quem falei está em lista de espera há 3 anos e 9 meses. Isto são barreiras que o Estado está a colocar, que tem repercussões reais na vida destas pessoas. Em desespero, elas tentam fazer “crowdfunding”, endividam-se e vão para o privado. Mas mesmo no privado já há listas de espera, porque não há muitas equipas especializadas, para além de cobrarem os preços que querem. Estamos a falar de uma população que tem suscetibilidades e fatores de risco que as colocam em situações muito precárias, não só de saúde mas também financeiramente.

O problema é falta de profissionais de saúde, ou é uma questão de organização?

Há falta de profissionais do SNS nesta área. E há uma má distribuição dos mesmo. Temos um centro, em Coimbra, que centraliza todo este processo. Mas as recomendações internacionais, se bem que reconhecem a necessidade de centros especializados, também falam na descentralização de muitos cuidados que não necessitam de uma especialização. Dou o exemplo das mastectomias: já há cirurgiões gerais a fazer mastectomias em Faro ou em Portimão, podemos descentralizar este procedimento a todo o país. O mesmo sucede com as reconstruções mamárias. As consultas de Sexologia também podem ser realizadas nas várias unidades de saúde sexual que existem no país.

Existe transfobia nos serviços de saúde, em Portugal?

Há dois estudos em Portugal - um feito por mim, pela Dra. Zélia Figueiredo e pela Dra. Carolina Lemos e outro feito pela associação Ação pela Identidade (API) - que mostram que mais metade das pessoas trans que recorreram ao SNS sofreram episódios de discriminação. Nós já o sabíamos porque ouvimos as pessoas há muito tempo. Agora temos estudos que o demonstram. Quando as pessoas trans vão ao centro de saúde, não só lhes é dito que o profissional não tem informação suficiente e portanto não consegue ajudar, como ouvem linguagem preconceituosa e insultuosa. Há profissionais que se recusam a tratar a pessoa trans pelo género escolhido porque dizem que o seu nome é o que está no cartão do cidadão. Há histórias de exames físicos invasivos feitos por mera curiosidade e há negação de cuidados de saúde, simplesmente por serem trans. O resultado é que as pessoas trans deixam de confiar nos profissionais e deixam de procurar cuidados: uma em cada cinco já evitou ir a um hospital numa situação de emergência, por medo do que poderia encontrar.

O que podemos fazer para combater a transfobia nos serviços de saúde?

Formação. Nas escolas médicas, de enfermagem, de psicologia, deve haver uma cadeira obrigatória de sexualidade que trate destes temas. Deve existir formação dentro dos programas de especialização dos profissionais, sobretudo em setores como os cuidados primários. A DGS deve produzir e distribuir materiais de informação para os consultórios médicos, com referência a associações que as pessoas possam procurar. E deveria haver algum tipo de mecanismo de denúncia de situações transfóbicas graves, que infelizmente são recorrentes e que nos têm chegado.

Consideras que as ordens profissionais devem ter algum papel no combate à discriminação?

Sem dúvida! Dou o exemplo da Ordem dos Médicos que até 2021 era a única ordem a nível mundial que exigia um relatório aprovado por ela mesma, tendo por base, por sua vez, 2 relatórios de “peritos de género”, para autorizar que uma pessoa trans pudesse fazer o processo de transição. A Ordem dos Médicos deveria estabelecer prioridades ao nível de cuidados de saúde trans e não ser ela mesma um fator de discriminação. O código deontológico da Medicina ainda fala das pessoas trans como transsexuais doentes, ao arrepio de todas as recomendações internacionais, cuja orientação é a da promoção da individualização dos tratamentos e a despatologização da condição trans.

Que falta ainda fazer do ponto de vista legal, para promover a igualdade?

É preciso que a lei da autodeterminação de género seja plena para todas as pessoas. Neste momento, a lei só existe para pessoas de género masculino e de género feminino, as pessoas não-binárias estão excluídas, não são reconhecidas juridicamente. Todos os processos na saúde, por exemplo, são vistos de forma binária. É exigido a uma pessoa trans que peça uma transição, que peça para ser operada ou tomar hormonas. Mas isto não corresponde à realidade. Nem todas as pessoas têm os mesmos objetivos e as pessoas não-binárias podem só querer fazer uma reconstrução mamária, podem não querer fazer hormonas ou querer fazer hormonas em dosagem diferente. Nós temos uma percentagem considerável de pessoas trans não-binárias. Depois, a questão da descentralização é fundamental, precisamos urgentemente de descentralizar cuidados de menor diferenciação que podem ser realizados em qualquer hospital ou em cuidados primários.

(...)

Esquerda Saúde 2

Revista Esquerda Saúde nº2

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A edição de junho de 2022 já está disponível online e traz em destaque um dossier sobre investigação em saúde. Leia aqui a revista em formato pdf.

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EUA: O triunfo do conservadorismo contra as decisões das mulheres

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Quem deve financiar a ciência?

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Sem financiamento público, a investigação básica não fica assegurada. Sendo esta  investigação fundamental para o avanço do conhecimento, mesmo a investigação mais  aplicada fica em sérios riscos a longo-prazo sem um sério investimento a montante.  Por Ana Isabel Silva, investigadora em Ciências da Saúde no i3S.

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